Foto: Mary F. Calvert/Reuters
24 de junho de 2020 | 10:08

Nos EUA, medo não é de 2ª onda, mas de focos de coronavírus até dezembro

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Foi preciso trocar a metáfora para tentar explicar o aumento de novos casos de contaminação por coronavírus em mais da metade dos EUA.

Especialistas e técnicos do governo americano substituíram a tese de que uma forte segunda onda vai atingir o país até o fim do ano pela ideia de que haverá novos surtos em várias regiões, em uma espécie de incêndio que pode se alastrar até depois de dezembro.

A intensidade e a extensão das chamas —que podem se espalhar caso não sejam controladas— vão depender da capacidade de testagem e do processo de reabertura econômica, que já está em curso em todos os 50 estados americanos.

Regiões que não reendurecerem suas regras de higiene e distanciamento social em meio aos repiques, por exemplo, devem ser mais impactadas e se tornar um problema para o restante do país.

“Temos que parar de pensar em ondas. No lugar disso, imaginaria um incêndio que cresce em brasas. Se essas brasas pousam num lugar onde as pessoas não estão tomando o cuidado necessário, essas brasas explodem”, afirma John Swartzberg, especialista em doenças infecciosas da Universidade da Califórnia em Berkeley.

Líderes da pandemia no mundo, os EUA registram mais de 2,3 milhões de casos e 121 mil mortes por Covid-19.

De acordo com levantamento do jornal The New York Times, 26 dos 50 estados americanos tiveram aumento sustentado de novos casos da doença nos últimos 14 dias —mesmo depois de o país ter registrado tendência nacional de queda no fim do mês passado.

Apesar do temor de que os protestos que reuniram multidões contra o racismo pudessem contribuir para que esses números subissem ainda mais, especialistas ouvidos pela Folha dizem que a situação piorou principalmente em estados que retomaram as atividades de forma prematura ou naqueles que ainda não haviam sido atingidos de vez pela pandemia.

“O que estamos vendo atualmente é o aumento de novos casos em estados que nunca foram realmente bloqueados e estão reabrindo sem nunca terem reduzido muito a transmissão”, diz o epidemiologista Arnold Monto, da Universidade de Michigan.

“Não é uma segunda onda, são crises onde pessoas que estão em um lugar com algum grau de transmissão se reúnem e passam muito tempo sem máscaras.”

Os quadros mais preocupantes estão no sul e na costa oeste dos EUA, como Oklahoma, Missouri, Arizona, Flórida e Texas, que chegou a registrar 5.400 novos casos em um único dia esta semana.

Governados por republicanos, do partido do presidente Donald Trump, esses estados retomaram suas atividades no início de maio, ainda sem ampla capacidade de fazer testes e monitorar novos casos.

Nesta semana, a Flórida chegou a mais de 100 mil casos, o Texas, 119 mil, e o Arizona, 54,7 mil. Missouri aparece com 18,7 mil casos e Oklahoma, 10,7 mil.

Governada por um democrata, a Califórnia foi um dos primeiros estados a entrar em quarentena nos EUA e também figura entre os que registram aumento nos novos casos. Especialistas tentam entender as razões para os picos nesse cenário —além da reabertura em andamento, que incluiu parques e praias do estado, demografia e densidade populacional devem entram na conta, além dos testes.

O maior número de testes é usado como argumento pelas autoridades estaduais —e também por Trump— para o justificar o aumento de casos, mas especialistas dizem que só isso não é suficiente para explicar os repiques, já que as hospitalizações e a porcentagem de testagem positiva também aumentaram em comparação aos níveis anteriores.

Durante comício no fim de semana, Trump afirmou que havia orientado o governo a diminuir a testagem, para que os números de novos casos baixassem nos EUA.

Três dias depois, Anthony Fauci, diretor do Instituto de Doenças Infecciosas e um dos especialistas mais respeitados do país, desmentiu o chefe.

Em sessão no Congresso americano nesta terça-feira (23), Fauci, que integra a força-tarefa sobre coronavírus na Casa Branca, disse a parlamentares que não recebeu nenhum orientação de Trump para diminuir os testes. “É o oposto. Vamos fazer mais testes, e não menos.”

O médico do governo americano disse ainda que tem visto “um aumento perturbador de infecções” em vários estados do país e que os próximos dias “serão cruciais para observar como vamos endereçar as questões [sobre controle dos repiques], principalmente no Arizona, na Flórida e no Texas.”

O consenso entre os especialistas é que, caso não sejam controlados, esses picos podem se espalhar por outras regiões e atingirem inclusive estados que já passaram pelo pior e começaram sua reabertura de forma gradual, como Nova York, com mais de 393 mil casos e quase 31 mil mortes.

No estado mais atingido pela pandemia dos EUA, os nova-iorquinos cumpriram uma rigorosa quarentena de quase três meses e iniciaram a reabertura somente em 8 de junho.

Na cidade de Washington, por sua vez, a segunda fase de retomada econômica começou nesta segunda-feira (22), depois de alguns picos de novos casos, seguidos de uma tendência de queda.

Além da capital, 15 estados americanos registram baixa nos novos casos nas últimas duas semanas.

Especialistas e autoridades já projetavam os repiques diante da reabertura, mas como esses picos têm ou não sido controlados é a principal preocupação a partir de agora.

A avaliação é que, entre julho e agosto, durante o verão no hemisfério norte, as pessoas relaxem seus comportamentos. As chances de infecção ao ar livre diminuem e, por estarem fora de casa, elas podem criar uma falsa sensação de normalidade.

Swartzberg diz que essa também pode ser uma das explicações para o fato de os protestos não terem causado explosões de novos casos, como era esperado.

“Os atos aconteceram nas ruas, ao ar livre, onde o contágio é mais difícil. Além disso, a maioria usava máscara, o que pode nos fazer pensar que esse acessório é ainda mais importante do que a gente pensava durante essa pandemia.”

Monto acrescenta que, em estados como Nova York e Michigan, onde os atos aconteceram ainda sob regras de quarentena e depois de níveis muito ruins de contaminação, os índices estão inclusive em queda.

Para eles, são necessárias ao menos duas medidas para impedir que esses novos picos se espalhem de maneira uniforme e ainda mais preocupante pelos EUA: mais teste e a possibilidade de retomar a quarentena em estados onde a situação está piorando.

“Quando observamos o número de casos e hospitalizações crescendo, mesmo que devagar, teríamos que diminuir o ritmo da reabertura econômica, esperar melhorar e, depois, abrir de novo”, diz Swartzberg.

A tese, porém, é bloqueada pela barreira política.

Trump diz que não vai decretar mais uma vez o fechamento dos EUA e é seguido por governadores como Ron DeSantis, da Flórida que afirma que não voltará à quarentena —ambos com medo do impacto econômico.

Já Greg Abbott, do Texas, alarmou-se com os mais de 5.000 casos em um dia essa semana em seu estado e pediu que as pessoas fiquem em casa depois de quase um mês e meio de reabertura.

“Infelizmente, aprendemos que é muito fácil reabrir, mas é bem mais difícil fechar de novo depois disso”, completa o professor de Berkeley.

Folha de S. Paulo
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