Foto: Marcelo Casal Júnior/Agência Brasil
27 de julho de 2020 | 06:41

Pressão por gastos põe em risco teto, dívida pública, inflação e juro baixo

economia

Os gastos extraordinários e a necessidade de ampliar a rede de proteção social no pós-pandemia da Covid-19 podem tornar inevitável o aumento da carga tributária, mesmo que temporário, para evitar que a dívida pública saia do controle, demolindo o atual cenário de inflação e juros baixos no Brasil.

Segundo especialistas, diante da pressão por novas despesas, o país deveria concentrar-se em duas frentes: 1) evitar que a dívida pública dispare novamente; e 2) respeitar o teto de gastos do setor público, mecanismo aprovado em 2016 que limita a despesa ao orçamento do ano anterior, corrigido pela inflação.

Sem essas premissas, o temor é que o país perca a atual janela de oportunidade de juros e inflação baixos —e de enorme liquidez internacional— para recolocar as contas públicas em uma trajetória de equilíbrio.

Neste ano, o endividamento bruto brasileiro dará um salto de 20 pontos percentuais, chegando a quase 96% em relação ao tamanho do PIB (Produto Interno Bruto).

Mesmo se o teto de gastos puder ser cumprido, a dívida pública encostará em 100% do PIB nos próximos anos, deixando para trás a expectativa de queda que havia até o início da pandemia.

Praticamente todas as economias terminarão 2020 mais endividadas, entre 15 e 25 pontos, elevando a chamada relação dívida/PIB —o principal indicador de solvência de um país.

O Brasil tem, disparado, o maior endividamento entre os emergentes, assim como uma das maiores cargas tributárias, equivalente a 33% do PIB. Mas também é um dos poucos países em desenvolvimento com sistemas universais de saúde e educação, que justificariam uma dose maior de tributos.

Nos Estados Unidos e em alguns países europeus, a relação entre dívida e PIB já supera 100%. Mas como eles são países de renda elevada e têm moedas (dólar e euro) consideradas reserva de valor, conseguem financiar o endividamento sem maiores dificuldades.

O Tesouro dos EUA, por exemplo, emite títulos com prazo de vencimento de dez anos para financiar a dívida federal pagando juros entre 0,5% e 0,7% ao ano. Na Europa, a taxa na Alemanha e na França chega a ser negativa: em troca de segurança, investidores perdem dinheiro aplicando nesses papéis.

No Brasil, no entanto, o Tesouro é obrigado a pagar juros de até 7,2% ao ano para convencer investidores a financiarem o governo —e a pressão por juros maiores tende a crescer quanto mais endividado estiver o setor público.

“É óbvio que uma relação dívida PIB de 96% é ruim. Mas trata-se de uma situação excepcional em todo o mundo. O principal neste momento é garantir que a dívida não sairá do controle, e para isso o teto de gastos é fundamental no sentido de ancorar as expectativas”, afirma o economista da PUC-Rio José Márcio Camargo.

Essa “ancoragem” de expectativas seria responsável, por exemplo, por manter a taxa de juro básica no Brasil em seu menor patamar (apesar da dívida em alta) e o chamado risco-país em um nível também historicamente baixo.

Mas o dólar acima de R$ 5 diante de reservas cambiais confortáveis (de US$ 340 bilhões) seria um sinal de que muitos investidores desconfiam da capacidade de o Brasil pagar sua dívida, e estão se protegendo em moeda forte.

Para o economista Samuel Pessôa, da FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) e colunista da Folha, o Brasil terá um “vento de cauda” favorável por um período ainda longo à frente advindo das taxas de juro internacionais muito baixas e da enorme liquidez que os bancos centrais vêm injetando no mercado global.

Isso, mais a elevada ociosidade na economia brasileira, com folga para produzir em vários setores, proporcionaria tempo ao país para adotar medidas que freassem a trajetória de crescimento da dívida. “Numa situação emergencial, um aumento da carga tributária, mesmo que temporário, talvez seja adequado”, diz Pessôa.

Uma alternativa, segundo ele, seria criar um imposto transitório sobre a gasolina enquanto o país se reorganiza no pós-pandemia e retoma a agenda de reformas —sobretudo para limitar o aumento de gastos com o funcionalismo, a segunda maior despesa depois da Previdência.

“Toda a ideia do teto de gastos é incompatível com o modo como tratamos a questão do funcionalismo, assim como foi com o sistema previdenciário até antes da reforma”, diz.

Para o economista Manoel Pires, da FGV Ibre, um aumento da carga tributária pode ser imprescindível para reverter a trajetória da dívida. “Se já achava complicado manter o ajuste fiscal antes da pandemia, isso tornou-se mais difícil agora.”

Estimativas do Ministério da Economia indicam um déficit primário (sem contar a rolagem da dívida) superior a R$ 800 bilhões neste ano. Os gastos extras, mais a recessão em curso, é que elevarão o endividamento em 20 pontos, para cerca de 96% do PIB.

Outra maneira de diminuir a relação ente dívida e PIB é aumentar o tamanho da economia, que serve de denominador para o cálculo. Se o PIB cresce mais do que a dívida, a relação cai.

O problema, segundo Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados, é que o Brasil já vinha crescendo muito pouco, ao redor de 1% ao ano, apesar de uma série de reformas aprovadas durante o governo Michel Temer.

Vale considera o teto de gastos “mal desenhado”, pois não levaria em conta os altos e baixos típicos de economias emergentes. Mesmo assim, acha que se o Brasil desrespeitá-lo agora, em meio ao aumento do endividamento, arruinará as expectativas macroeconômicas.

“Isso é coisa para ser feita por um novo governo, em um momento de estabilização, não de crise.”

Segundo o economista Bráulio Borges, da FGV Ibre, uma das vantagens do perfil atual da dívida pública é que a maior parte dela é corrigida por taxas de juro pós-fixadas e pela inflação (ver quadro).

Em um cenário de juros e evolução de preços historicamente baixos como o de agora, o aumento do endividamento tende a ter efeito limitado —a não ser que haja uma mudança repentina das expectativas em relação à sustentabilidade das contas públicas.

Alguns economistas argumentam que dificilmente a inflação subiria diante de um quadro de forte desaquecimento e elevado desemprego, como o que o país está vivendo. Pois a economia em queda limitaria muito o espaço para aumentar preços.

Mas a história recente mostra que essa visão tem problemas. Em 2015, no governo Dilma Rousseff, a economia encolheu 3,5% e, mesmo assim, a inflação disparou, fechando o ano em 10,7%, muito acima do teto da então meta do Banco Central, de 6,5%.

Naquele momento, a inflação elevada e a desconfiança em relação à solvência do Brasil obrigaram o Banco Central a manter a taxa básica de juros paga nos títulos que o Tesouro vende no mercado em 14,25% ao ano durante quase todo 2016 —o que significou mais endividamento ainda, já que a dívida foi corrigida por um juro maior.

Ao longo dos 11 trimestres recessivos entre 2014 e 2016, a relação entre dívida e PIB deu um salto: passou de 56,3% para 69,8%, numa combinação de encolhimento da economia e juros elevados.

O temor agora é que se a desconfiança sobre o controle da dívida aumentar, como ocorreu em 2015, a inflação volte a subir, assim como a necessidade de elevar os juros.

Como a maior parte da dívida pública está indexada à inflação e a títulos pós-fixados, que poderiam voltar a subir, o endividamento ficaria descontrolado outra vez.

Para o economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper e colunista da Folha, o risco agora é que há interesses muito fragmentados de grupos políticos e econômicos em busca de auxílios e aumentos de gastos, que podem vir a comprometer o controle da dívida e da inflação no pós-pandemia.

“No Legislativo, vemos uma pressão desorganizada por novos gastos, mas sem foco no desenho de políticas. No Executivo, há muita descoordenação e iniciativas, como na ala militar, por mais despesas e investimentos sem as receitas correspondentes.”

Um ponto a favor, segundo Mendes, é que a arrecadação tributária parece estar voltando com mais força do que o inicialmente previsto. Mas isso não garantiria a sustentabilidade das contas públicas no médio prazo se os gastos crescerem muito mais.

“O ideal seria aprovarmos pelo menos duas ou três reformas, mesmo que modestas, para dar uma sinalização positiva. Mas não vejo esse governo como reformista, pelo contrário”, afirma.

No mínimo, o que os economistas sugerem é segurar as despesas com o funcionalismo público, limitando contratações e bloqueando aumentos salariais, tentar privatizar alguns ativos, simplificar o sistema tributário e rever uma série de créditos subsidiados e incentivos a determinados grupos.

Folha de S.Paulo
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