Foto: Divulgação
O economista cearense Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro Nacional 29 de setembro de 2020 | 17:00

Medidas populistas terão custo muito alto para o País, diz ex-secretário do Tesouro

economia

O economista cearense Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro Nacional, é um dos técnicos mais respeitados do País quando o que está em pauta é a questão fiscal. Em 15 de julho, depois de mais de vinte anos ocupando diferentes postos no serviço público, em Brasília, interrompidos apenas entre 2014 e 2016, quando pediu licença para atuar como consultor, ele deixou o governo para voltar à iniciativa privada. Vai se tornar sócio e economista-chefe do banco BTG Pactual, em São Paulo, assim que terminar a quarentena remunerada de seis meses imposta aos cargos mais altos do funcionalismo.

Em sua primeira entrevista desde a saída do Tesouro, Mansueto, que completa 53 anos nesta quarta-feira, 30, afirmou ao Estadão que todo mundo vai perder se as contas públicas saírem do trilho. “Se a gente esquecer o controle de gasto e aumentar a carga tributária, não vai crescer muito”, disse. “É um caminho que me assusta. Eu espero que a gente não vá por aí”.

Segundo ele, se o governo fizer alguma “tolice” do ponto de vista fiscal, a inflação vai voltar, os juros vão subir muito – não agora, em dois ou três meses, mas dentro de um ano a um ano e meio – e o País terá um problema muito sério para administrar mais à frente. “Se o debate político nos levar a adotar medidas populistas, já que os benefícios de curto prazo são maiores do que os danos, que vão aparecer aos poucos, o custo será muito alto”, afirma. “Os juros vão aumentar, a inflação vai voltar, os desequilíbrios setoriais vão se acentuar e o investimento vai cair”.

Qual a sua visão sobre a atual situação fiscal do País? Como o Brasil vai sair da pandemia neste quesito?

É um pouco preocupante. Quando o teto dos gastos foi aprovado, em 2016, estava previsto um ajuste fiscal gradual, que o mercado aceitou. Qual era a lógica do teto? Com a economia crescendo 2,5% ao ano, a despesa não financeira do governo central cairia cinco pontos percentuais do PIB (Produto Interno Bruto) no espaço de dez anos, o equivalente a 0,5 ponto do PIB por ano. Com isso, o déficit primário praticado na época, de 2,5% do PIB, seria transformado num superávit de 2,5% do PIB em 2026. A previsão era já zerar o déficit primário em 2021. Só que, segundo o orçamento enviado pelo governo ao Congresso, o déficit estimado para o ano que vem é de 3% do PIB. Ou seja, segurando a despesa, depois de cinco anos de o teto de gastos ter entrado em vigor, o déficit primário aumentou, em vez de diminuir.

Na prática, o que isso significa para a economia do País?

Isso quer dizer que o esforço fiscal tem de aumentar e não diminuir. Apesar da contenção de gastos e da queda da despesa discricionária, o orçamento de 2021 aponta que a despesa não financeira do governo central será de 19,8% do PIB no próximo ano. Em 2016, ano-base do teto, ela foi de 19,9% do PIB. Ou seja, a despesa praticamente não caiu nos primeiros cinco anos do teto de gastos – com um agravante. No orçamento de 2021, o governo estimou que a receita liquida será de 16,7% do PIB. É mais ou menos dois pontos do PIB a menos do que a média de 2011 a 2013. Em relação aos últimos dois ou três anos, haverá uma perda de um ponto do PIB em arrecadação. É muita coisa. A gente já vinha perdendo arrecadação, mas isso ficava um pouco mascarado, porque havia receitas extraordinárias. Em 2020, com a queda do PIB, que será recuperada apenas em parte no ano que vem, considerando a estimativa de crescimento de 3,5% do mercado, a receita ainda ficará abaixo de antes da crise.

Olhando um pouco mais para a frente, qual é a sua expectativa para as contas públicas?

O cenário hoje é mais desafiador do que era em 2016, quando o teto dos gastos foi aprovado. Se não houver aumento de arrecadação maior do que o crescimento da economia nos próximos anos, ou seja, se a arrecadação em relação ao PIB não aumentar, a gente vai chegar em 2026 com déficit primário, mesmo que o Brasil continue a cumprir o teto de gastos até lá. Pela regra do teto, você poderia reduzir a despesa em no máximo 0,5 ponto do PIB por ano. Em cinco anos, daria para obter uma redução de 2,5% do PIB. Mas, como o déficit do ano que vem está previsto em 3% do PIB, ainda haverá um déficit de 0,5 ponto do PIB em 2026, quando se completam dez anos do teto de gastos. Agora, se a gente conseguir recuperar um ponto do PIB de arrecadação com a volta do crescimento, já vai dar para pagar uma parte da conta. Quando o teto foi aprovado, a queda gradual da despesa pública se baseava num crescimento de 2,5% do PIB ao ano, mas também houve uma frustração neste ponto. Mesmo antes da crise, a economia só cresceu 1% ao ano, por diversos fatores. Em cima disso, ainda houve a queda do PIB com a pandemia, que estava fora do radar de todo mundo. Então, para chegar em 2026, com superávit primário de 1,5% a 2% do PIB, a gente terá de fazer em cinco anos um ajuste que estava programado para dez.

Com os gastos realizados na pandemia, a previsão é de que a dívida pública chegue a quase 100% do PIB já neste ano. Como isso afeta o quadro fiscal?

É mais um agravante. Quando a gente começou a falar em teto dos gastos em 2016, a dívida pública bruta era 69,9% do PIB. No fim deste ano, a dívida será de 95% a 100% do PIB. Além disso, o prazo da nossa dívida é muito curto. Então, hoje, o ponto de partida para o ajuste fiscal é pior do que naquela época. O déficit é maior e a dívida muito mais alta. Não tem muita margem para erro neste cenário. Se chegar a um ponto de os investidores não confiarem no governo, o prêmio de risco para colocar os títulos públicos no mercado vai ser muito alto, o juro vai subir muito e a coisa pode ficar muito séria.

Dada a magnitude do problema, o sr. acredita que é possível fazer o ajuste em cinco anos?

A gente ter que fazer o ajuste. Se a gente vai ou não fazer o dever de casa, depende de todo mundo: da sociedade, do governo e do Congresso. Se isso não for feito, a culpa não será de ninguém isoladamente. Se o governo falhar ou se o Congresso não aceitar o ajuste ou se a gente não pressionar o governo e o Congresso para fazer o que tem de ser feito, uma coisa é certa: todo mundo vai perder. Possivelmente, até 2026, a gente não vai conseguir colocar a dívida pública bruta e líquida numa clara trajetória de queda, mas vai ter de fazer esse esforço do ajuste fiscal para consolidar o cenário de juros baixos, para isso não ser algo de dois ou três anos, mas de mais de uma década, e para o governo ter recursos para financiar políticas públicas e recuperar a capacidade de investimento. Claro, que ainda é preciso ter uma dívida menor, porque, como aconteceu uma crise inesperada neste ano, outras crises virão nos próximos anos, nas próximas décadas. O governo precisa ter espaço fiscal para quando isso ocorrer poder aumentar seu endividamento. Nos últimos quatro anos, o governo fez coisas muito difíceis, inclusive a aprovação da reforma da Previdência no ano passado, no governo Bolsonaro, que é muito difícil de ser aprovada em qualquer país do mundo, por mais que seja importante e fácil de justificar pelos números. O governo Temer, que veio de um processo de impeachment e tinha uma taxa de aprovação do presidente ficava em torno de 10%, conseguiu mesmo assim fazer uma série de reformas difíceis: o teto de gastos, a reforma trabalhista e ainda mudou toda a lógica da política de crédito subsidiado, que tinha um custo muito alto para o Tesouro. Então, é possível fazer o ajuste. Só depende de nós.

Há uma variável que tem um efeito muito positivo nesta equação sobre a qual a gente não falou. A taxa básica de juros, hoje, é de 2% ao ano, a menor de todos os tempos. Até que ponto isso pode contribuir para o reequilíbrio das contas públicas?

Realmente, uma das coisas que beneficia o País é que a taxa de juros caiu muito. Mesmo com uma dívida muito maior, o serviço da dívida será menor agora do que era há quatro ou cinco anos. Agora, a queda dos juros é um fenômeno mundial. Há um excesso de liquidez no mundo, sem pressão inflacionária. A diferença é que países como Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos conseguem se financiar no longo prazo com juros negativos (abaixo da inflação). Isso significa que, se eles fizerem alguma coisa errada do ponto de vista fiscal, têm tempo para corrigir, porque o impacto no serviço da dívida não é imediato. No Brasil, os juros estão muito baixos, mas a nossa dívida gira no curto prazo. Somando os títulos do Tesouro que vencem em 12 meses, os títulos ligados à Selic e as operações compromissadas do Banco Central, dá mais ou menos 60% da dívida atrelados ao juro de curto prazo. Se a gente fizer alguma tolice e o juro de curto prazo lá na frente – não estou falando em dois três meses, mas em um ano ou um ano e meio – subir muito, vamos ter um problema muito sério.

A situação se deteriorou tanto, em boa medida, por causa da pandemia, que afetou as contas públicas do Brasil e dos demais países. Há maior tolerância dos investidores em relação à situação fiscal do País por causa disso?

Se a gente falasse há cinco ou seis anos que a dívida bruta do Brasil chegaria a 95% ou 100% do PIB, todo mundo iria se assustar. Seria algo impensável, difícil de os investidores aceitarem. Mas neste ano a gente teve uma crise que foi mundial. O Brasil fez, inclusive, algo muito correto, que foi ter um orçamento de crise, chamado de “orçamento de guerra”, que permitiu ao governo abrir créditos extraordinários. Mas as despesas de combate à covid-19 estão dentro de uma categoria especial, que começa e termina neste ano. As pessoas esquecem de que o governo não foi autorizado a descumprir o teto de gastos do orçamento aprovado no início de 2020. A LOA (Lei Orçamentária Anual) de 2020, não previu exceção. Isso só foi autorizado para os créditos extraordinárias relacionados a programas que não estavam previstos no início do ano. Por isso é que foi possível, mesmo com o gasto aumentando tanto e a dívida crescendo 20 pontos do PIB, a gente ir para um déficit primário de 12%. Por isso é que, mesmo com um buraco fiscal tão grande, o mercado aceitou a queda de juros. Mesmo quando o Tesouro Nacional tem de pagar um prêmio sobre a taxa Selic para vender títulos, a taxa de juro final é menor do que a que ele pagava há dois, três ou quatro anos. O mercado se mostrou disposto a aceitar uma piora temporária nas contas públicas. Depois de 2020, todo mundo espera que o País volte gradualmente a fazer o ajuste. Os juros no próximo ano serão muito maiores do que neste ano? Não. O mercado ainda aceita o ajuste gradual. O que o mercado quer, o que todo mundo quer é ter a certeza de que o ajuste gradual vai continuar.

O sr. acredita que em 2021 e 2022 possam haver novas receitas extraordinárias para amenizar o problema fiscal, como vendas de ativos e privatizações?

Uma receita extraordinária que estava mais ou menos programada eram os dividendos de bancos públicos. A política de desinvestimento aumenta o lucro dos bancos. Com isso, os dividendos pagos ao governo também aumentam. O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), por exemplo, está fazendo o desinvestimento na carteira de participações da BNDESPar, o que era esperado. Nos últimos 18 meses, o BNDES fez vendas grande de ações da Petrobrás, da Vale e agora está vendendo sua participação na Suzano. A BNDESPar era o braço de investimento do BNDES para fazer aplicações em empresas para fomentar o mercado de capitais e depois sair e não para ficar por dez, quinze anos como acionista. Se o BNDES vende uma ação por um preço maior do que comprou, há um ganho de capital, que é taxado e também reforça o caixa do governo. Então, essa agenda de desinvestimento dos bancos públicos e a própria recuperação de algumas operações desses bancos, estava gerando dividendos bem maiores. A Petrobras vendeu a BR Distribuidora por quase R$ 10 bilhões e e a TAG (Transportadora Associada de Gás) para a Engie, por mais de R$ 30 bilhões. Teve também a revisão da cessão onerosa. Agora, está com plano de vender as refinarias. A agenda de concessões no primeiro ano do governo Bolsonaro trouxe um ganho muito grande. Claro que, com o problema da covid, parou um pouco. Mais para frente, a gente terá mais a renovação de concessões importantes, como a da hidrelétrica de Tucuruí, em 2024. O que está mais complicado é a parte da privatização, que tem de andar também.

Há, ainda, o pagamento dos empréstimos feitos pelo Tesouro aos bancos públicos. Isso não pode ajudar a melhorar o quadro?

Exato. Mas grande parte disso já foi paga. Desde o governo Temer, o BNDES começou a pagar os empréstimos que recebeu do Tesouro Nacional. Para você ter uma ideia, no fim de 2014 o total de empréstimos do Tesouro para os bancos públicos era R$ 545,6 bilhões, equivalentes a 9,4% do PIB. No final do ano passado, este valor caiu para R$ 222 bilhões, o equivalente a 3% do PIB. Só em 2019 o BNDES pagou quase R$ 124 bilhões de dívida junto ao Tesouro. De qualquer forma, se o BNDES pagar isso nos próximos dois anos vai ajudar muito. Agora, a dívida ficou tão grande que o impacto não será tão forte. O que vai resolver isso é crescimento econômico e a volta do superávit primário. É a conjunção das duas coisas. Quando a economia cresce mais rápido. Todos os indicadores fiscais e dívida pública, que são calculados em relação ao PIB, melhoram. No ano passado, o crescimento foi de 1,1%, um crescimento baixinho. Mas permitiu uma redução na dívida bruta em 4 pontos percentuais do PIB. Então, a retomada do crescimento vai ser importantíssima para a agenda fiscal – e ela só virá com a continuação da agenda de reformas.

Ao observar o cenário fiscal, qual fator mais o preocupa?

A grande questão é como conciliar uma demanda crescente da sociedade por mais proteção, mais igualdade de oportunidades, mais políticas públicas com um buraco fiscal enorme. O que me preocupa é a gente querer dar solução para isso aumentando gasto, porque aí será necessário aumentar também a carga tributária — e o Brasil já tem uma carga tributária muito alta. Todo mundo acha que paga muito imposto. O Brasil é um país extremamente desigual. É um dos países mais desiguais do mundo, apesar de todos os avanços que aconteceram. Então, a demanda da sociedade é legítima, mas a gente não consegue atendê-la, mesmo tendo uma carga tributária alta. A nossa carga tributária, que deve ter caído um pouco agora na crise, está em torno de 33% do PIB. Isso nos coloca como um país que está entre os de maior carga tributária da América Latina. O Brasil está dez pontos do PIB acima da média da região, que é de 22% a 23% do PIB. Na OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), a carga tributária média é 34% do PIB. Ou seja, o Brasil tem uma carga tributária dos países da OCDE, que é formada em grande parte por países ricos. Ainda assim, a gente tem um buraco fiscal muito enorme, com o agravante de que a sociedade naturalmente deseja maior apoio do governo, quer políticas públicas mais distributivas.

Qual a solução que o sr. propõe para enfrentar essa contradição?

A gente não vai conseguir resolver essa contradição aumentando gasto, porque aí a gente teria de aumentar ainda mais a carga tributária. A forma ideal seria por meio da realocação de despesas. Para o governo aumentar a arrecadação, a gente vai ter de revisar alguns daqueles regimes especiais de tributação. É um debate difícil? É. Mas a gente tem de ir por aí. Alguns benefícios se justificam, outros, não. Por exemplo: o que justifica num país que tem sistema universal de saúde integral e gratuito você poder abater de sua renda tributável todo o seu gasto com saúde privada? É um benefício para quem usa plano de saúde privado. Outra coisa: no Brasil, quando você completa 65 anos, a sua faixa de isenção do Imposto de Renda dobra. Por que? Há pessoas com 65 anos que têm rendimento baixo e outras que têm aposentadoria alta. Por que a faixa de isenção tem de dobrar para todo mundo? De repente, você teria de dar um benefício para pessoas de renda baixa, para famílias pobres, mas não para pessoas que não precisam. A gente vai ter de analisar tudo isso com lupa. Para mudar a composição da despesa, tem de fazer um debate muito melhor e mais transparente, para explicar para as pessoas as anomalias que existem no Brasil do lado do gasto público, da arrecadação e da carga tributária.

Parece que, no Brasil, a gente está eternamente discutindo as mesmas questões e as mudanças nunca vêm. Todo mundo quer a mudança, mas só para os outros. O sr. acredita que é possível dar uma guinada nesta direção?

Muitas vezes, não é por maldade que as pessoas não querem mudar. É porque elas não têm consciência do problema. Com a reforma da Previdência aconteceu algo parecido. Há três ou quatro anos, a população era muito reticente em aprovar a reforma da Previdência. Depois, uma parcela muito grande da população passou a aceitar a necessidade da reforma. Então, a gente precisa explicar melhor para todo mundo os problemas que têm do lado do gasto e do lado da receita para poder ter alguma mudança e conciliar o ajuste fiscal e o desejo legítimo da sociedade por mais políticas distributivas e que aumentem a igualdade de oportunidades. Quando você dá publicidade e as pessoas começam a entender o problema, naturalmente elas pressionam o Congresso por mudança, como na reforma da Previdência. A gente conseguiu aprovar a reforma da Previdência porque passou três anos debatendo. As pessoas começaram a entender que, do jeito que o sistema funcionava, beneficiava mais as pessoas de alta renda do que as de baixa renda. Porque o trabalhador da construção civil em São Paulo, que não conseguia contribuir por 30 ou 35 anos, já se aposentava com idade mínima de 65 anos.

Mesmo com a carga tributária já alta, tem gente que defende que a solução para tudo isso só será possível com um novo aumento de impostos. O que o sr. pensa sobre isso?

O aumento da carga tributária pode se dar por meio da revisão de benefício tributário, como falei há pouco, e não por meio de elevação de alíquota. Isso será necessário. Uma parte do aumento da arrecadação de que o País precisa virá do crescimento, outra parte vai vir da revisão de renúncias tributárias e se isso não for suficiente terá de vir também pelo aumento de alíquotas. Este risco já existe. Se, mesmo assim, a gente passar para uma agenda de aumentar gasto público, a carga tributária terá de ser ainda maior do que é. Naturalmente, a gente terá de fazer um debate sobre a tributação das pessoas de renda mais alta, mesmo cumprindo o teto de gastos. Agora, só tributando rico não vai solucionar nada. O Brasil não consegue arrecadar via Imposto de Renda o que ele precisa para pagar despesa. Uma grande parte da arrecadação do Brasil é imposto indireto. Mesmo a gente começando a tributar dividendo, grande parte da carga tributária do Brasil ainda virá de imposto indireto. Se a gente começar a aumentar despesa, com certeza terá de haver aumento de alíquota. Países que tributam mais são os que têm produtividade maior. Para países de renda média, o Brasil tem uma carga tributária alta e baixa produtividade. Se a gente for por esse caminho, de esquecer controle de gasto e aumentar carga tributária, a gente não vai crescer muito. É um caminho que me assusta muito. Eu espero que a gente não vá por aí.

Qual a sua visão sobre a proposta de criar um imposto de transações financeiras, nos moldes da antiga CPMF, para viabilizar a desoneração da folha de pagamento das empresas, com o objetivo de gerar mais empregos?

Eu não conheço bem a proposta. Tem de fazer um cálculo de custo e benefício. Isso me assusta um pouco, porque a última vez que a gente teve CPMF no Brasil foi em 2007. A alíquota da CPMF era de 0,38% e você arrecadava 1,5% do PIB, que seria algo como R$ 100 bilhões hoje. Mas uma coisa é a CPMF de 2007, num País que tinha juros básicos de dois dígitos e outra coisa é uma CPMF hoje, com o juro básico em 2% ao ano. Tem de ver qual será o efeito disso. O melhor seria a gente ir gradualmente desonerando a folha e melhorando o leque de impostos que já existem. Agora, eu não tenho opinião formada sobre a questão. Mas tem de olhar muito bem isso, para ver se não vai causar distorções maiores do que se quer consertar.

Existe hoje uma pressão política muito forte no sentido de flexibilizar o teto e aumentar gastos e a própria carga tributária. A proposta de criação do programa Renda Cidadã, para ampliar o Bolsa Família com recursos do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) e dos precatórios é um exemplo. A chamada “contabilidade criativa” está voltando sob nova configuração?

Eu também não sei exatamente o que o Renda Cidadã hoje. Vi pelo jornal. Agora, não gosto que a fonte de recursos sejam os recursos destinados ao pagamento de precatório. Como o precatório vai continuar existindo, na prática o governo vai deixar de pagar uma conta para pagar outra que será criada. Você estará postergando um pagamento de algo que é devido. Embora uma parte grande da classe política não goste da ideia, se você perguntar para dez economistas qual seria uma fonte boa para programa social, nove dirão que é o abono salarial. O abono salarial, que é um 14º salário, hoje é muito oneroso. De repente, se não há consenso para acabar com o abono e transformá-lo num reforço ao Bolsa-Família, pelo menos ele poderia ser limitado a quem ganha até um salário mínimo. Em muitos casos, o dinheiro iria voltar para a família de quem hoje recebe abono salarial. Em toda a simulação que se faz, o fim do abono salarial não vai aumentar a pobreza e a desigualdade no País. É muito melhor acabar com o abono salarial e fortalecer um programa como o Renda Cidadã. Isso não significa que a gente não deva mexer também na tributação que favorece mais as pessoas de alta renda. A pejotização, por exemplo, é um problema. A gente tem de resolver isso. No Brasil, muitas vezes o que você paga de Imposto de Renda não dependa da renda, mas do tipo de contrato de trabalho. A gente tem de discutir também a tributação de dividendos. Claro que, se isso acontecer, será preciso reduzir o Imposto de Renda das pessoas jurídicas, das empresas tributadas com base no lucro real. O problema da tributação de dividendos não são as empresas que pagam IRPJ com base no lucro real. São muito mais as empresas tributadas pelo lucro presumido e pelo regime especial de tributação. Se a gente quer gastar mais com social, com programas mais focados em famílias de baixa renda, tem de procurar uma fonte estável de financiamento. A ideia de adiar o pagamento de precatório é uma espécie de financiamento do governo via dívida. É uma dívida que você está postergando o pagamento para o futuro. É um recurso que não existe. Não é algo comum.

Toda essa necessidade que o sr. está colocando de ajuste das contas públicas terá de ocorrer num ambiente eleitoral, quando há mais resistência em adotar medidas consideradas impopulares. Neste ano, temos as eleições municipais e em 2022 a eleição presidencial, na qual o presidente Jair Bolsonaro deverá disputar a reeleição. Como isso pode afetar essa trajetória?

Isso é um problema geral, que afeta vários países. Como conciliar o desejo legítimo que um governante tem de ser reeleito e aprovado pelo que está fazendo em seu governo, num país que tem reeleição, com a necessidade de um ajuste fiscal, de responsabilidade num prazo mais longo? A única forma de a gente solucionar esse dilema é o bom debate político, mostrando o que o governante está querendo fazer, que há uma medida que se for aprovada agora vai ter um impacto grande daqui a dois ou três anos e não é consistente com o ajuste fiscal que a gente tem de fazer. Nenhum técnico, nenhum economista, vai resolver isso. Apenas o bom debate político vai solucionar essa questão. Se o debate político nos levar a adotar medidas populistas, já que os benefícios de curto prazo são maiores do que os danos, que vão aparecer aos poucos, é um risco que a gente tem de correr. A gente nunca vai ter um ambiente ideal para reformas. A gente só vai conseguir forçar o governo a seguir uma trajetória que não seja populista, mas fiscalmente responsável, com o debate político. Aí não estou falando só de partido político. Tem de entrar a sociedade civil, os jornais, pressionar o governo, os nossos representantes para garantir que a gente não vai sair fora do trilho, porque se sair o custo será muito alto.

Ao se aliar com o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, o presidente Jair Bolsonaro sinalizou que estava empenhado em buscar o equilíbrio das contas públicas e em implementar a agenda de reformas. Mas, decorridos quase dois anos de governo, a gente vê que isso não é bem assim. Em sua avaliação até que ponto o presidente Bolsonaro hoje está comprometido com o controle das contas públicas e com a agenda reformista?

As pessoas no Brasil ainda colocam um peso muito grande na equipe econômica do governo e no presidente. Mas para o ajuste fiscal caminhar ou não depende muito de consenso político. Numa democracia, principalmente num país como o Brasil, em que 95% das despesas são obrigatórios, a margem para fazer um ajuste fiscal depende necessariamente de apoio político. Claro que a posição do presidente é muito importante, inclusive para tentar construir uma base política para seu projeto de reformas. Claro que a posição da equipe econômica também é muito importante. Mas, no Brasil, a gente tem de ter a maturidade de aceitar que só vai conseguir fazer um ajuste fiscal e as reformas de que o País precisa para crescer mais rápido se criar um consenso político. A nossa última eleição foi um pouco complicada porque tinha um ataque muito grande à velha política e falou-se muito de uma nova política que ninguém sabia muito o que era. Hoje, o que a gente observa é que tem alguns Estados, com governadores que não eram políticos, que não estão conseguindo avançar na agenda de reformas, e outros Estados, com políticos tradicionais, que estão conseguindo avançar na agenda de reformas. Como sociedade a gente tem de confiar mais na política. Hoje, no Brasil, você tem um Ministério Público funcionando muito bem, a Justiça funcionando muito bem. Se há desvio de recursos públicos, isso é investigado, punido. Nós temos de entender que um país como o Brasil, como qualquer democracia, só vai conseguir resolver esse conflito por meio da política. Se quem sair vencedor de uma eleição municipal, estadual ou presidencial não tiver apoio político e não construir essa base política não vai conseguir avançar nas mudanças. Mesmo que você acredite que a mudança seja positiva, não é fácil mudar em nenhum país do mundo. Na década de 80, a gente não conseguiu fazer isso. Resultado: a inflação disparou. Se a gente falhar agora, não vai ter mágica. Os juros vão aumentar, a inflação vai voltar, os desequilíbrios setoriais vão se acentuar e o investimento vai cair, até chegar num ponto em que a sociedade se sentirá tão pressionada que acabará fazendo alguma coisa. A nossa história de oportunidades perdidas é mais ou menos isso. São histórias em que a gente falhou em criar um consenso político para tomar as medidas necessárias para fazer ajustes e reformas que nos levassem ao crescimento. Acontece que, hoje, se a gente não conseguir fazer as reformas para o País começar a aumentar a produtividade, a usar todo o nosso potencial, o risco de bater na parede será muito maior e mais rápido do que foi na segunda metade do século 20.

Ao observar o resultado das propostas do ministro Paulo Guedes para a economia de forma geral e para a questão fiscal em particular, muita gente diz que ele perdeu a força e a influência que mostrava no começo do governo. Como o sr. vê isso hoje?

O ministro é uma pessoa superbem intencionada. Ele fala as coisas de uma forma muito enfática e aposta numa agenda que é mais ou menos a que ele sempre defendeu, de equilíbrio fiscal, reformas econômicas, maior integração com o resto do mundo, uma agenda mais liberal. Ele é muito coerente no que defende. Só que o governo depende muito do presidente da República e de sua base política. O ministro está às vezes numa situação desafiadora de ter de explicar reformas que são difíceis para a classe política. O papel do ministro da Economia é sempre muito ingrato. Ele é quem sempre tem de explicar para o presidente, para os demais ministros e para a classe política a necessidade de ajustes. Então, eu não diria que o ministro está mais fraco ou mais forte. A gente chegou num momento em que houve uma demanda muito grande da sociedade por algum tipo de proteção, que neste ano de crise veio na forma do auxílio emergencial. Aí, houve uma nova demanda por política sociais mais ativas. Num primeiro momento, algumas pessoas acharam que a forma de atender à demanda por mais políticas sociais era simplesmente aumentando o gasto. Coube ao ministro mostrar que não, que era um risco muito grande seguir por esse caminho. Isso causou o barulho normal que você tem nessas discussões. Uma coisa todos nós temos de entender: independentemente do que a gente acha do governo, se a área econômica mudar, se a agenda econômica mudar, se o caminho do ajuste fiscal for abandonado, todo mundo vai sofrer. Não só o governo. Hoje, a gente está vendo empresas cancelando operações de abertura de capital que estavam programadas porque a Bolsa piorou muito. Em setembro, depois de três ou quatro meses de alta, a Bolsa está caindo. Se a agenda fiscal sair do trilho, todo mundo vai perder. Se a gente não continuar melhorando as condições econômicas, mesmo que com algum atraso, vai sobrar uma conta muito alta para todos nós. Eu me preocupo menos se o ministro está mais ou menos forte e mais se a gente está conseguindo convencer a classe política e a sociedade da necessidade do ajuste.

Estadão Conteúdo
Comentários