Foto: Diego Vara/Reuters
05 de setembro de 2020 | 22:00

Saúde quintuplica distribuição de cloroquina no SUS e tenta desovar estoque recebido dos EUA

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Mesmo sem comprovação científica da eficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento contra a Covid-19, o Ministério da Saúde quase quintuplicou a distribuição dos remédios a estados e municípios durante a pandemia.

Ao mesmo tempo, faz uma nova tentativa de desovar na rede pública doses doadas pelos Estados Unidos que estão paradas em estoque.

Dados obtidos pela reportagem por meio da Lei de Acesso à Informação mostram que, de março a julho deste ano, já foram enviados 6,3 milhões de comprimidos de cloroquina, na dosagem de 150mg, para abastecer as unidades do SUS (Sistema Único de Saúde).

É 455% a mais do que o repassado no mesmo período do ano passado (1,14 milhão), quando a aplicação se dava apenas em terapias contra a malária e outras doenças.

Até julho, cerca de 5 milhões de comprimidos foram remetidos pela pasta só para uso em pacientes com o novo coronavírus –já são 5,6 milhões agora.

Os envios aceleraram em maio e junho, coincidindo com uma escalada na campanha do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em defesa do medicamento, o que levou à queda dos ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich.

Eles eram contrários à ampliação da oferta, restrita inicialmente a casos graves. Após a saída dos dois, o ministério estendeu a indicação também para quadros leves.

Alçado ao cargo, o ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, atribui o aumento na distribuição às demandas de estados e municípios.

No entanto, dados levantados pela reportagem com secretarias estaduais de Saúde mostram que, em alguns casos, a quantidade recebida foi superior à usada na rede.

No Distrito Federal, por exemplo, só foram consumidos 36% dos comprimidos enviados até abril. No Paraná, o percentual é o mesmo.

Em São Paulo, a secretaria diz ter recebido 986 mil comprimidos, mas está devolvendo 450 mil, a pedido do ministério, para redistribuição.

Questionada sobre a devolução, a pasta estadual diz que as remessas iniciais foram definidas pelo ministério com base no número de casos confirmados de Covid-19, mas que desde maio tem informado não precisar de mais envios.

Mesma situação ocorre no Rio de Janeiro, onde a secretaria diz que não precisa de mais remessas e tem estoque para mais três meses.

Por outro lado, há também quem diga ter solicitado mais doses a pedido de municípios, caso de Minas Gerais.

Secretários de Saúde ouvidos pela reportagem, porém, dizem que essa situação tem sido menos frequente e que já há até quem planeje novo destino para os medicamentos.

É o caso do Maranhão, que tem 80 mil pílulas e diz que só vai usá-las para tratar doenças indicadas na bula, como malária, artrite e lúpus. E não pretende requerer mais.

Os motivos são a falta de eficácia e as recomendações de comitês de infectologistas, afirma o secretário estadual de Saúde e atual presidente do Conass, conselho que reúne gestores estaduais, Carlos Lula.

“Todo mundo receitava cloroquina no início, até termos os primeiros resultados que apontavam que não fazia efeito. Foi um processo de tentativa e erro. O ministério entregou uma quantidade considerável e, depois, paramos”, afirma.

Ele relata que a distribuição nem sempre era sob demanda. “Ele [ministério] entregou muita coisa sem avisar. Diziam que ia mandar testes e, quando víamos, chegava um monte de cloroquina.”

Após turbinar a oferta de cloroquina no SUS, o governo federal se prepara agora para tentar distribuir 3 milhões de comprimidos de hidroxicloroquina. Desse total, 2 milhões vieram do governo de Donald Trump e 1 milhão da Novartis.

A doação havia sido anunciada em maio, mas a distribuição emperrou por causa de um imbróglio com estados e municípios.

A doação foi em caixas com 100 e 500 comprimidos, o que exige custos para o fracionamento de doses para uso contra a Covid-19. A orientação federal prevê, em média, 12 unidades.

Sem conseguir dividir os remédios em laboratórios oficiais, o governo federal quer repassá-los a estados e municípios que manifestarem interesse e tenham condições de fazê-lo em farmácias próprias e de manipulação.

“Fizemos as ponderações de que isso não vai ser fácil, mas o ministério não abre mão por exigências legais e pela impossibilidade de fracionar antes”, diz o assessor técnico do Conasems (conselho de secretários municipais de saúde), Elton Chaves.

Para ele, a medida pode trazer custos aos municípios. Também gera preocupação aos estados, diz Lula.

Em junho, a OMS (Organização Mundial de Saúde) decidiu interromper testes com a hidroxicloroquina para tratamento de Covid-19 após revisão de estudos não apontar eficácia.

Um mês depois, a SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia) divulgou um comunicado em que propõe que as medicações sejam abandonadas “no tratamento de qualquer fase” da doença.

O secretário de Ciência e Tecnologia do ministério, Hélio Angotti, diz que críticas sobre a falta de eficácia estão desatualizadas. Estudos com maior número de pacientes e controlados e randomizados, tidos como padrão-ouro, no entanto, ainda não apontam eficácia.

Para o coordenador científico da SBI, Sérgio Cimerman, a remessa de cloroquina para Covid é um equívoco.

“Não deveria ser [distribuído] sem ter uma base científica adequada. Até o presente momento, não se tem evidência que se traduziu em benefício clínico e é por isso que não se tem essa indicação.”

Em nota, o Ministério da Saúde diz que a distribuição da cloroquina ocorreu “de acordo com os pedidos e planejamento prévio da pasta”, “com base em estudos existentes no Brasil e no mundo, parecer do Conselho Federal de Medicina, além de experiência da rede pública na utilização”.

A pasta, no entanto, não informou quais seriam esses estudos.

Folhapress
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