Foto: Tia Dufou/White House
06 de setembro de 2020 | 07:03

Trump tenta dominar narrativa dos protestos, e Biden reage para evitar reviravolta

mundo

Os números chamaram a atenção de Joe Biden logo após a convenção republicana.

No estado de Wisconsin, considerado chave na disputa à Casa Branca, o apoio a protestos contra o racismo e a violência policial tinha despencado 13 pontos percentuais de junho a agosto.

Feito pela Marquette Law School, o levantamento era localizado e media a opinião de eleitores pouco antes da nova onda de manifestações no país, mas, mesmo assim, preocupou o candidato democrata.

As reivindicações de grupos progressistas são geralmente positivas para Biden, mas o esforço de Donald Trump em dominar a narrativa dos protestos com o discurso da lei e da ordem fez com que o ex-vice de Barack Obama reagisse para evitar uma reviravolta.

Líder nas pesquisas nacionais e na maior parte dos estados decisivos, Biden tem trajetória centrista, mas é acusado por Trump de ser um radical de esquerda que vai mergulhar o país na violência caso seja eleito.

O presidente usa a retórica do medo para animar sua base conservadora e também tentar assustar eleitores independentes e moderados que escolheram o republicano em 2016 e agora, cansados de sua postura agressiva, flertam com a candidatura de Biden.

“Essa eleição decidirá se protegemos os americanos que cumprem a lei ou se damos rédea solta aos violentos anarquistas, agitadores e criminosos que ameaçam nossos cidadãos”, disse Trump na semana passada, durante a convenção republicana.

Diante do discurso encaixado do presidente, Biden reviu estratégias e decidiu viajar a Wisconsin e a outras regiões decisivas após um longo período evitando aparições públicas em razão da pandemia.

O democrata também lançou comerciais de TV específicos para esses estados, na tentativa de rebater a mensagem de que é uma ameaça aos EUA e imprimir em Trump a marca de um líder irresponsável, que legitima o ódio e o racismo no país.

“Eu pareço um socialista radical com uma queda por desordeiros? Sério?”, disse Biden em evento no início da semana. “Tumultos não são protestos. Saquear não é protestar. Atear fogo não é protestar. São ilegalidades, pura e simplesmente. Aqueles que o fazem devem ser processados. A violência não trará mudanças, apenas destruição.”

Em 23 de agosto, Jacob Blake, um homem negro morador de Kenosha, em Wisconsin, foi baleado sete vezes pelas costas durante uma abordagem policial, transformando a cidade de 100 mil habitantes em um ponto crucial na corrida à Casa Branca.

O episódio deu novo fôlego aos atos que tomaram o país desde o fim de maio, quando George Floyd, um homem também negro e desarmado, foi asfixiado por um policial branco em Minnesota.

A maioria das manifestações tinha ocorrido de forma pacífica até então, mas o caso de Blake escalou a polarização nas ruas com confrontos entre racistas e antirracistas e a morte de pelo menos três pessoas.

Em Kenosha, um jovem de 17 anos ligado a organizações de extrema direita matou dois manifestantes antirracistas usando um fuzil AR-15. Em Portland, no estado do Oregon, um homem que usava um boné com insígnia de um grupo de extrema direita foi morto em meio aos atos por um homem que se declarava antifascista —e que acabou morto pela polícia na noite de quinta (3).

Trump não criticou o atirador de Kenosha e se solidarizou com a morte da vítima em Portland, carregando os protestos para o centro do debate eleitoral.

Muitas vezes com alegações falsas e racistas, a tentativa do presidente é trocar de assunto e fazer com que a campanha não seja um referendo sobre sua condução errática e ineficaz diante da pandemia que já matou quase 190 mil pessoas nos EUA.

A menos de 60 dias da eleição, Trump joga por uma arrancada, enquanto Biden atua para manter a liderança.

Segundo o site FiveThirtyEight, que compila a média das principais pesquisas do país, Biden tem 50,2% ante 42,9% de Trump. A diferença já chegou a quase dez pontos —inclusive em Wisconsin—, mas hoje está na casa de sete, tanto em termos nacionais como no estado.

Em 2016, Trump também usou o medo na campanha contra Hillary Clinton, ao dizer que imigrantes violentos invadiriam os EUA caso a democrata fosse eleita. Ele conseguiu uma vitória surpreendente, atropelando as previsões que, como agora, mostravam seu nome atrás em todas as pesquisas.

Naquela época, porém, outros fatores contribuíram para o resultado, como o cansaço de parte da população com a política tradicional e o baixo comparecimento de eleitores progressistas, entre negros e jovens, que não se sentiam mobilizados para votar em Hillary —o voto não é obrigatório nos EUA.

Neste ano, Trump é o presidente no cargo, sob uma pandemia que matou milhares e uma crise econômica que deixou milhões de desempregados.

A taxa de desemprego nos EUA chegou a 14% durante a pandemia e, em agosto, caiu para 8,4%, com o fim do auxílio do governo e o retorno ao trabalho de pessoas que estavam de licença por causa da crise sanitária —a criação de novos postos ainda está em desaceleração.

A economia era o principal trunfo de Trump no início do ano, quando os números eram bastante positivos. Agora, apesar de a recuperação ainda estar claudicante, a melhora dos índices de desemprego foi celebrada pelo presidente, que promete “um ano ainda melhor”para 2021.

A popularidade do presidente tem caído desde o início do ano, mas, nas últimas semanas, seu desempenho melhorou em alguns estados-chave.

Especialistas ressaltam que a confiabilidade das pesquisas pode variar bastante, inclusive de acordo com o comparecimento do eleitorado no dia do pleito, e não há dados conclusivos que mostrem que moderados votariam em Trump porque temem a violência, por exemplo. Mas Biden não quer arriscar.

Em 2016, Trump venceu no Colégio Eleitoral —sistema indireto que escolhe o presidente americano— por uma margem bastante estreita na Pensilvânia, Michigan e Wisconsin, que ganhou novos holofotes este ano com os protestos em Kenosha.

Na terça-feira (1º), Trump viajou à cidade e enalteceu policiais, anunciou o repasse de recursos para fortalecer as forças de segurança e chamou os protestos de “terrorismo doméstico”.

Dois dias depois, foi a vez de Biden fazer a cruzada para se contrapor ao presidente.

O democrata falou com Blake ao telefone e teve uma reunião reservada com seus familiares —que não se encontraram com Trump durante a visita do presidente. Biden também conversou com lideranças comunitárias em uma igreja, equilibrando oportunidades e riscos de atestar sua promessa de unificar o país mesmo em tempos tão divisivos.

A equipe de Biden sempre soube que os protestos não seriam fonte certa de votos —ele tem dificuldade de conquistar eleitores jovens e negros, maioria nas ruas, mas conta com Obama, popular entre esses grupos, como principal cabo eleitoral.

Biden aposta num grande arco anti-Trump para atrair de progressistas a moderados e avalia que o desafio aumentou de tamanho com os protestos a partir de Wisconsin.

Assessores do presidente, por sua vez, dizem que, para ficar na Casa Branca, Trump pode perder em Michigan e na Pensilvânia (Biden lidera nos dois estados por margem de 6,5 e 4 pontos, respectivamente), contanto que leve Wisconsin e os outros estados onde venceu há quatro anos.

Numa eleição disputada em que é impossível dominar os fatos, avança uma casa quem controlar a narrativa.?

Folha de S. Paulo
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