Foto: Alan Marques/Folhapress
Supremo parece se afastar daquilo que justamente lhe dá autoridade: sua adesão à Carta e a coerência de seus votos 05 de dezembro de 2020 | 14:40

Julgamento no STF sobre reeleição no Congresso pode indicar que não importa o que a Constituição diz

brasil

Como dizer que a Constituição não diz o que diz?

Essa parece ser a pergunta essencial que ronda o julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de reeleição de presidentes da Câmara do Senado.

Afinal, o texto constitucional que está sob análise do Supremo é bem claro. O parágrafo 4º do artigo 57 diz que, no primeiro ano da legislatura (período de quatro anos), deputados e senadores elegerão as respectivas mesas diretoras —e, nelas, a presidência de cada uma das casas legislativas— “para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”.

Ainda que não pairem dúvidas sobre o texto constitucional, o Supremo foi instado pelo PTB a declarar inconstitucional qualquer outra interpretação que não a óbvia que proíbe a reeleição de presidente da Câmara e do Senado em uma mesma legislatura. O debate dividiu o Supremo.

Porém, ainda que seja óbvia e literal a vedação constitucional à reeleição de presidentes da Câmara e do Senado em uma mesma legislatura, o Supremo dirá o oposto.

Por enquanto, cinco ministros do Supremo Tribunal Federal, além da Procuradoria-Geral da República e da Advocacia-Geral da União, entendem que a Constituição não diz o que diz.

O relator, ministro Gilmar Mendes, desenvolveu para isso um voto com uma série de razões: em um primeiro momento, argumentou que a norma que proíbe a reeleição não é cláusula pétrea, ou seja, a vedação à reeleição poderia se transformar em permissão, sem com isso gerar qualquer afronta aos princípios democráticos e republicanos.

Depois argumentou que a emenda constitucional nº 16, ao instituir a possibilidade de reeleição para cargos do Executivo, passou a exigir uma harmonização com demais regras constitucionais, de forma a rebalancear as relações entre os Poderes Executivo e Legislativo.

E, por fim, defendeu que algumas normas constitucionais, sobretudo aquelas que se referem à organização interna dos Poderes, devem ter “plasticidade” para permitir novas interpretações e privilegiar as práticas institucionais sobre a literalidade constitucional.

Essa posição entende que a Constituição não veda a possibilidade de uma (e apenas uma) reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado, independentemente da legislatura, se os parlamentares assim desejarem.

Há uma única divergência estabelecida nesta posição, entre os ministros Gilmar Mendes e Nunes Marques, reside no momento para observar essa nova orientação.

Para Gilmar, em razão da anterioridade eleitoral, a possibilidade de uma (apenas uma) reeleição será aplicada a partir da próxima legislatura. Até lá, Câmara e Senado poderiam promover novas reeleições, sem observar esse limite.

Para Nunes Marques, o limite de uma reeleição valeria desde já. Na prática, trata-se sobre a possibilidade de Maia e Alcolumbre, ou apenas este último, reelegerem-se, respectivamente, presidentes da Câmara e do Senado.

De outro lado, dois ministros, votaram pela inteligência literal da Constituição. O julgamento tem previsão de término em 14 de dezembro.

Até lá, outras divergências ou mudanças nos votos ainda podem acontecer. Caso o julgamento assim se consolide, os efeitos práticos não serão desprezíveis.

A presidência das casas legislativas controla a agenda de grande parte do que é votado na Câmara e no Senado. Em especial, a presidência da Câmara é responsável, sozinha, por segurar ou fazer avançar os pedidos de impeachment contra Bolsonaro.

É verdade, não é a primeira vez que o Supremo altera o sentido literal da Constituição. Assim o fez, inclusive, em relação a normas de direitos fundamentais, cláusulas pétreas. Neste mesmo ano de 2020, o Supremo julgou que a redução de salários poderia ser feita por acordos individuais entre trabalhadores e empregadores, ainda que a Constituição exija convenção ou acordo coletivo (art. 7º, VI).

Nos últimos anos, o Supremo entendeu possível a prisão após condenação em segunda instância, ainda que a Constituição exija o esgotamento de todos os recursos (art. 5º, LVII) e também achou viável suspender o mandato parlamentar como medida cautelar penal, mesmo com a Constituição vedando a prisão de parlamentares justamente para preservar o mandato (art. 53, §2º).

Em todos esses julgamentos, havia uma razão não jurídica a justificar o abandono do texto da Constituição: ora foi preciso “salvar a economia”, ora foi preciso “ouvir o clamor das ruas”.

Agora, parece que é preciso “salvar a governabilidade” e o “padrão civilizatório” do Parlamento. Ouvir o direito e salvar a Constituição ficaram para depois.

O Supremo parece se afastar daquilo que justamente lhe dá autoridade: sua adesão à Constituição e a coerência de seus votos.

O maior impacto desse julgamento parece ser a resposta dada, mais uma vez pela suprema corte do país, de que simplesmente não importa o que a Constituição diz.

Folha de S. Paulo
Comentários