Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Milton Ribeiro 10 de maio de 2021 | 08:49

Milton Ribeiro protelou enviar à PF apuração de fraude em entidade ligada a pastores aliados

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O ministro da Educação, Milton Ribeiro, atuou nos bastidores a favor de um centro universitário denunciado por fraude no Enade 2019. A instituição é presbiteriana, assim como o ministro, que é pastor.

A fraude teria ocorrido no curso de biomedicina da Unifil, de Londrina (PR), a partir do vazamento da avaliação do ensino superior.

Investigação do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) concluiu haver fortes indícios, sobretudo estatísticos, de fraude após a coordenadora da graduação ter tido acesso à prova e às respostas com antecedência.

O ministro Ribeiro tratou do caso pessoalmente. Ele recebeu os controladores da instituição e viajou a Londrina no meio do processo, além de ter determinado que seu próprio secretário acompanhasse uma visita de supervisão.

A instituição tem ligação com a Igreja Presbiteriana Central de Londrina. O chanceler da Unifil é o pastor Osni Ferreira, líder dessa igreja —seu irmão Eleazar Ferreira é o reitor.

Osni e Eleazar foram recebidos por Ribeiro em seu gabinete em 2 de setembro do ano passado.

A investigação interna do MEC contra a instituição já estava adiantada nessa época. No dia 26 daquele mês, um sábado, Milton Ribeiro viajou à Londrina, sem assessores da pasta, para visitar a Unifil. Ele deu uma aula e concedeu entrevista com elogios à instituição.

Ribeiro ainda aproveitou a mesma viagem para fazer uma pregação, no dia seguinte (27), na igreja comandada por Osni, apoiador do presidente Jair Bolsonaro. Em março do ano passado, ele convocou uma carreata para defender o presidente e criticar restrições de circulação.

Ao longo da apuração, o ministro protelou o envio do caso à Polícia Federal, segundo pessoas próximas ao caso. A área técnica e a Procuradoria do Inep haviam concluído pela necessidade da investigação criminal desde meados de 2020.

Ribeiro teria chegado a ameaçar de demissão lideranças do Inep caso a investigação fosse levada à PF. Na época, Alexandre Lopes presidia o órgão.

A informação sobre a atuação de Ribeiro foi confirmada à Folha por três pessoas do alto escalão envolvidas com o tema. O recado teria sido dado pelo secretário-executivo da pasta, Victor Godoy Veiga.

Em conversas e em reuniões no MEC, de acordo com pessoas envolvidas no caso, o ministro e seu principal assessor foram claros sobre o motivo para impedir a apuração criminal: tratava-se de uma instituição presbiteriana.

Um ofício só foi levado à Polícia Federal em fevereiro deste ano, após o MEC ter encerrado a investigação de forma favorável. Evidências estatísticas da fraude, apuradas pelo Inep, foram ignoradas na decisão.

Em nota, a pasta informou que o caso foi enviado à autoridade policial. “Toda a apuração foi realizada pelo MEC de maneira técnica, observando-se os dispositivos legais. Todos os atos administrativos praticados estão adequadamente registrados no processo administrativo encaminhado na íntegra à Polícia Federal pelo MEC em fevereiro de 2021”, diz nota do ministério.

A Unifil não respondeu aos questionamentos enviados desde o dia 27 de abril.

O Enade é realizado por alunos concluintes. O resultado compõe indicadores de qualidade e impacta na regulação —desempenhos ruins podem provocar o fechamento do curso?.

A Folha teve acesso e analisou mais de 60 documentos sigilosos do processo, entre pareceres, despachos e emails. A reportagem conversou com 17 pessoas, entre integrantes e ex-integrantes do MEC, avaliadores e membros de órgãos de controle.

O Inep recebeu uma denúncia anônima em 17 de novembro de 2019, uma semana antes do Enade. Nela, um aluno afirmou que a coordenadora de biomedicina na Unifil, Karina Gualtieri, teria vazado questões e o gabarito aos estudantes naquele mês. O objetivo era obter nota máxima, o que ocorreu.

A denúncia chamou atenção no Inep porque Gualtieri teve, de fato, acesso ao material com antecedência: ela faz parte da comissão que elaborou a avaliação para o governo. Gualtieri não respondeu à reportagem.

O Inep manteve o exame para depois averiguar os dados. Com base nas primeiras evidências, o instituto barrou os resultados do curso na divulgação do Enade 2019, em outubro.

A medida é incomum, embora o órgão receba muitas queixas a cada edição: sobre o Enade 2019, foram levadas ao Inep 88 denúncias, mas só neste caso o resultado foi vetado por causa das evidências de irregularidades.

Técnicos do Inep então compararam o desempenho da Unifil com a média dos cursos de biomedicina do país e também com os de nota máxima. Concluiu-se que era estatisticamente impossível que a Unifil conseguisse o resultado alcançado.

O Enade é dividido em dois componentes. No bloco Formação Geral, a instituição foi um pouco pior do que os melhores cursos de biomedicina do país. Por outro lado, no bloco Conhecimentos Específicos da carreira, no qual recai a denúncia, obteve 31,8 pontos percentuais acima das melhores graduações.

Em 16 das 22 questões dessa parte da prova, a Unifil teve rendimentos acima do registrado pelos cursos nota máxima. A diferença foi mais de 50% superior em cinco questões e, em duas delas, todos seus 44 alunos na prova gabaritaram, enquanto o nível de acerto não chegou a 40% nas outras graduações no topo da avaliação.

“Em face aos resultados das análises estatísticas, considera-se que há indícios de vazamento de gabarito das questões do Enade 2019, da área de avaliação Biomedicina”, diz o parecer 133 do Inep.

O ministro ainda voltou a Londrina em 22 de novembro, um domingo. Participou de outros dois cultos ao lado do pastor Osni.

No dia seguinte a essa viagem, Ribeiro convocou reunião, fora da agenda pública, para tratar do tema. A convocação para o encontro, com a cúpula do MEC e do Inep, em 23 de novembro, tinha o título “ENAD-UNIFIL (Biomedicina)” [sic].

Em paralelo à apuração do Inep, a Seres (Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior) do MEC determinou que uma comissão de avaliadores fosse à Unifil para uma segunda análise em dezembro.

Mas o próprio secretário da Seres na ocasião, Danilo Dupas Ribeiro, foi enviado para acompanhar pessoalmente o procedimento. Dupas Ribeiro esteve na Unifil em 15 de dezembro.

Foi a única viagem oficial que ele fez nos seis meses em que respondeu pela Seres. Consultados, dois ex-titulares da subpasta estranharam a presença do secretário na supervisão.

Nessa operação, avaliadores analisam, por exemplo, o desempenho dos estudantes no curso, comparam a grade com o que caiu no Enade e podem falar com ex-alunos. Um dos membros da comissão afirmou à Folha que tudo foi feito com seriedade. Essa supervisão não contempla, no entanto, a análise estatística de desempenho como a realizada pelo Inep.

A reportagem fez contato com seis diplomados em biomedicina na Unifil em 2019. Três concordaram conceder entrevista mas interromperam a conversa quando avisados sobre o tema.

O processo na Seres acabou concluído de forma favorável à Unifil em 27 de janeiro. A subpasta determinou a divulgação dos resultados, o que ocorreu em 12 de fevereiro.

O ministro demitiu Alexandre Lopes da presidência do Inep em 26 de fevereiro. Nomeou, no mesmo dia, o próprio Danilo Dupas Ribeiro para o cargo. ?O Inep foi questionado e não retornou. Alexandre Lopes também não respondeu.

Paulo Saldaña/Folhapress
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