Foto: Pedro Ladeira/Folhapress/Arquivo
André Luiz Pereira do Vale, 19, ficou detido em um centro para imigrantes no Mississippi, nos EUA, e foi deportado para o Brasil em novembro 28 de dezembro de 2021 | 13:15

Brasileiros deportados dos EUA relatam humilhação, racismo e maus-tratos

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Brasileiros deportados dos Estados Unidos relatam humilhação, racismo e maus-tratos sofridos durante as tentativas de entrar no país. Histórias de abusos são recorrentes entre migrantes mantidos em centros de detenção após verem frustrada a passagem através da fronteira com o México.

“Eles [agentes de segurança] tratam a gente mal, [com] falta de educação, agridem verbalmente porque não podem encostar na gente. Eu não entendia muito bem o que diziam, mas o tempo todo eles gritavam ‘fuck you, shit'”, contou à Folha o agricultor André Luiz Pereira do Vale, 19.

Hoje ele mora na comunidade rural de Córrego do Dourado, em Tarumirim (MG). O município fica no entorno de Governador Valadares, no leste mineiro, marcado historicamente pela migração para os EUA.

Na última semana, a Folha mostrou que brasileiros dessa região arriscam a vida na travessia pelo México e contrabandistas alugam crianças por US$ 3.000 para facilitar a entrada ilegal.

O jovem de Tarumirim já teve oito irmãos vivendo nos EUA após essa jornada pela fronteira sul. Ele também tentou entrar no país em abril deste ano, mas o plano deu errado quando se entregou a autoridades americanas e teve negado o pedido de asilo.

Vale contou que os problemas começaram já na fase de triagem, quando dormiu no chão e passou frio. Ele ficou seis meses em um centro de detenção no Mississippi. Os momentos mais traumáticos de que se recorda são desse período e o fizeram desistir definitivamente de uma nova tentativa de mudar de país.

Segundo o relato de Vale, as agressões verbais dos agentes de segurança eram frequentes. O agricultor reclamou ainda das refeições, servidas com excesso de pimenta.

Diante das ofensas e dos constrangimentos, ele recorreu à fé. Católico, passou a fazer pregações para brasileiros, haitianos e venezuelanos.

“Foi Deus que me ajudou e me sustentou. Eu sempre tive minha fé, mas eu não conhecia Deus como conheci lá”, afirmou.

Vale é um entre tantos brasileiros deportados semanalmente em voos fretados pelo governo americano que chegam ao aeroporto de Confins (MG). Segundo dados da Polícia Federal, foram 1.304 brasileiros em 2020 e 2021.

O terminal foi escolhido para o desembarque porque 70% dos que voltam são de Minas Gerais. A palavra humilhação foi a mais citada em relatos colhidos pela Folha.

A embaixada dos EUA, em nota, afirmou que todas as instituições governamentais estão comprometidas com o tratamento respeitoso. “Estamos preocupados com o sofrimento humano que essas perigosas viagens trazem àqueles que as fazem, especialmente para menores. Tentar entrar ilegalmente nos EUA cria mais problemas do que resolve”, disse a assessoria de imprensa da representação diplomática.

A estudante Melissa de Carvalho, 19, foi detida e encaminhada para o estado do Arizona. Ela disse que não recebeu tratamento digno na cela, que estava superlotada.

“Os deboches eram muito com o olhar, cutucavam a gente, olhavam para roupa, tênis. Debocharam do meu cabelo. Havia meninas que a menstruação corria pelas pernas e as agentes riam, controlavam até o papel higiênico”, disse.

Carvalho mora em Serra (ES) e foi em agosto aos EUA para se encontrar com a família que a aguardava. Ela estava acompanhada do irmão na travessia, mas só ele conseguiu entrar. Ela foi mandada de volta ao Brasil no mês passado.

Segundo a PF, o perfil dos deportados, na maioria das vezes, é masculino, com idade de 18 a 25 anos e que já tentou entrar ilegalmente antes nos EUA. Predominantemente, os aspirantes declaram ser estudantes, trabalhadores da construção civil e do comércio.

O cozinheiro Jhonatan Nogueira da Silva, 35, é um dos reincidentes. Ele viveu por oito anos nos Estados Unidos, de 2000 a 2008, e também tentou entrar de forma irregular em 2019.

Silva relatou xingamentos e atitudes racistas por parte de agentes. “Alguns abusam da autoridade, são bem racistas, não gostam de imigrante, falam, zombam, fazem críticas, principalmente a quem não fala inglês”, disse.

Ao chegar ao Brasil em novembro, carregava um saco de cor laranja, entregue pelas autoridades americanas, com seus pertences. Silva se disse indignado por ter sido algemado no voo de deportados.

Vale, Carvalho e Silva são unânimes nas críticas ao uso das algemas, uma vez que dizem nunca terem cometido um crime. No entanto, a prática de algemas os deportados é uma política habitual dos EUA durante o voo. A restrição só é retirada quando o avião aterrissa em solo brasileiro.

Segundo João Francisco Campos da Silva Pereira, chefe da Divisão de Assistência Consular do Ministério das Relações Exteriores, a dispensa do uso de algemas em voos de deportação é uma das principais reivindicações do Itamaraty e da Polícia Federal.

Um dos argumentos, diz Pereira, é que a maioria das pessoas detidas não é criminosa. Apesar dos migrantes entrarem no país de forma irregular, a migração por si só não é crime.

As autoridades brasileiras também já pediram que parentes não sejam separados na deportação e que brasileiros com problemas de saúde só embarquem se estiverem em condições de viajar após receberem tratamento médico nos EUA.

A contrapartida do Itamaraty e da PF foi a autorização dada ao governo Joe Biden para enviar dois voos de deportados por semana. Segundo as autoridades brasileiras, os americanos tentam negociar um terceiro voo.

Em relação às queixas dos brasileiros, Pereira disse que o Itamaraty não tem conhecimento de todos os problemas relatados porque, na maioria das vezes, os migrantes não procuram órgãos oficiais.

Pereira explicou que o papel do ministério é zelar para que os brasileiros recebam tratamento digno. No entanto, segundo ele, é importante que a denúncia seja formalizada para que a pasta possa pedir explicações oficiais às autoridades americanas.

“O que a gente percebe é que muitos brasileiros têm medo de ir ao consulado, de procurar nossa ajuda, porque acham justamente que a gente vai denunciar para as autoridades locais, seja nos Estados Unidos, Japão, Portugal, França”, disse Pereira.

“A gente não faz isso. A nossa obrigação é atender, acolher o brasileiro e prestar a assistência mínima cabível que a gente consegue”, afirmou.

A orientação de não contar os problemas às autoridades parte de contrabandistas e coiotes. Segundo relatos de deportados, ao entrarem nos Estados Unidos eles recebem orientações sobre como e com quem devem falar.

Para solicitar asilo às autoridades americanas, por exemplo, uma das diretrizes é dizer que estão sob ameaça de morte no Brasil ou que foram torturados por agentes do governo, como policiais e políticos.

A embaixada americana, em nota, afirmou que os EUA acolhem a migração legal como um dos alicerces da formação do país. Disse ainda que as leis de migração não mudaram, continuarão a ser cumpridas e que a fronteira não está aberta.

“Os voos de deportação continuam, inclusive para o Brasil, e indivíduos que tentam entrar ilegalmente devem prever a remoção para seu país de origem”, diz a nota.

“Nossa mensagem aos indivíduos que consideram fazer a perigosa e onerosa jornada para tentar entrar ilegalmente nos EUA é simples: não o façam”, afirmou a embaixada, ecoando o discurso oficial do presidente Biden e de sua vice, Kamala Harris.

Raquel Lopes, Ricardo Della Coletta e Pedro Ladeira, Folhapress
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