Foto: André Dusek/Estadão/Arquivo
A ex-presidente Dilma Rousseff 23 de janeiro de 2022 | 08:00

Ex-colega de Dilma fala em livro sobre prisão da ‘torre das donzelas’, na ditadura

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Décadas se passaram até que a professora universitária Ana Maria Ramos Estevão conseguisse vir a público expor o que viveu durante o regime militar.

O relato pessoal dela de perseguições, companheirismo na cadeia e torturas durante o auge da repressão está no livro “Torre das Guerreiras e Outras Memórias”, lançado pela editora 106.

Ana Maria, hoje com 73 anos, foi colega de cela no presídio Tiradentes, em São Paulo, da ex-presidente Dilma Rousseff e de outras militantes. Dilma ficou presa no local por quase três anos. Ana Maria esteve lá detida por sete meses, entre 1970 e 1971.

O título do livro ironiza o apelido “torre das donzelas” dado por presos homens à ala feminina do presídio, tido pela autora como conotação machista.

Nordestina, de origem pobre, aluna do curso de serviço social, a autora tinha atuação, dentro do movimento estudantil, no apoio logístico a integrantes da ALN (Ação Libertadora Nacional), um dos principais grupos da luta armada no período.

As descrições das torturas sofridas logo após a prisão estão entre as partes mais impactantes do relato. Ana Maria diz que sofreu choques elétricos por períodos em que não consegue dimensionar por ter perdido a noção de tempo. “Deus não existe na tortura, ficamos sós, completamente. Solidão pior que a da morte.”

Em um dos trechos, expressa a culpa que a afligiu por anos pelo fato de ter mencionado em interrogatório uma amiga. Mas entende que é “cruel e perverso” esperar atitude heroica de quem foi submetido a tal sofrimento.

No depoimento, diz que reconheceu em uma das ocasiões o à época major Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe de uma das unidades da repressão, frequentador da Igreja Metodista, assim como ela. O oficial, que morreu em 2015, voltou ao noticiário político nos últimos anos ao ser elogiado pelo presidente Jair Bolsonaro, que é capitão reformado do Exército.

Foi Ustra, diz Ana Maria, quem deu a ordem para que uma sessão de pau de arara cessasse porque a torturada era fraca e “não resistiria”. Os militares perceberam posteriormente, segundo a autora, que havia outros alvos com potencial de informações muito maior.

O livro também menciona o caso do ativista Márcio Toledo, que foi morto por companheiros de guerrilha na época em que ela já estava presa, e diz que a atitude foi enfaticamente criticada pelos demais militantes.

A justificativa dada para a morte, conta ela, eram “questões de segurança”, por Toledo cogitar abandonar a luta armada.

“Não deveria ter sido difícil aceitar que algumas pessoas não tinham estrutura emocional para militar daquela maneira e que elas podiam mudar de ideia, simplesmente reconhecer suas limitações”.

Ela conclui: “De todas as culpas que carregamos, essa é a pior porque é coletiva, não tem perdão”. Antes da prisão, Ana Maria havia convivido com Carlos Eugênio Sarmento da Paz, conhecido como Clemente, um dos líderes da ALN e que morreu em 2019.

Outro ponto alto do depoimento é a descrição do dia a dia dos presos políticos na “torre”, quase todas jovens na faixa dos 20 e poucos anos. O presídio, antiga cadeia de escravos fugitivos no século 19, foi demolido nos anos 1970.

Ana Maria fala de revistas nas celas feitas de surpresa de madrugada, da preocupação com colegas grávidas e do envio de recados, para visitantes, escondidos em peças de artesanato produzidas pelas detentas.

Diz que havia o hábito de cantar o tempo todo. “Por tristeza, para avisar das novidades, quando alguém chegava, quando alguém saía”.

Recorda também de intensa “conversa” com os homens da ala vizinha graças a uma parede nos banheiros na qual trocavam mensagens em código Morse.

Ao falar da convivência com as companheiras de cela, lembra que uma delas, Heleny Guariba, sumiria meses depois e hoje é considerada desaparecida política do regime.

A ex-presidente Dilma aparece esporadicamente nos relatos. É descrita como estudiosa e com bom humor para inventar apelidos para todas as integrantes da ala. “Seu tom de voz era invariavelmente professoral e de comando, mesmo quando a gente não estava discutindo política”.

No prefácio, Dilma afirma que a ex-colega conseguiu encontrar pequenas alegrias e motivos para acreditar na humanidade “quando a rotina era a banalidade do mal”.

O vínculo formado com as companheiras foi tal que, diz a autora, em “ironia das ironias”, ela se sentia protegida e feliz na cadeia. Uma das colegas se tornaria sua orientadora em mestrado na USP.

Ana Maria voltou a ser presa em duas ocasiões, em 1972 e 1973. Sentindo-se ameaçada, imaginando que seria novamente alvo da repressão por seus muitos contatos entre militantes de esquerda, passou um período na Europa graças a uma bolsa de estudos.

Parte do relato também analisa as sequelas das situações dramáticas que viveu. Conta a autora que sofria “ataques de mudez” e que por anos rejeitava ter qualquer conversa sobre política. “Uma dor congelada e não enfrentada permanece doendo”, diz no livro.

Felipe Bächtold/Folhapress
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