Foto: Danilo Verpa/Folhapress/Arquivo
Obra do artista Franz Krajcberg em museu em Nova Viçosa, no extremo sul da Bahia 24 de maio de 2022 | 22:09

Obras do artista Frans Krajcberg devem ficar com governo da Bahia, decide Justiça

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O Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) decidiu que o governo estadual tem a propriedade sobre as obras do artista plástico Frans Krajcberg, como o próprio já havia manifestado em dois testamentos. A decisão é mais um capítulo da batalha judicial em torno do espólio do polonês naturalizado brasileiro que morreu em 2017, sem parentes vivos.

Krajcberg doou todos os bens, em testamento, ao governo da Bahia, o que inclui, além do acervo com mais de 48 mil itens, cerca de 50 hectares do sítio Natura, antigo ateliê onde vivia praticamente recluso desde 1978, no município de Nova Viçosa, extremo sul do Estado.

O TJ-BA acatou pedido de indeferimento feito pelo estado contra a medida cautelar ajuizada pelo inventariante do testamento, Ernani Griffo Ribeiro. Em outra ação, a jornalista Renata Rocha pleiteia acesso às obras, em um processo de união estável com Krajcberg, ajuizado após a morte do artista.

No testamento, o artista plástico estabeleceu uma série de exigências ao estado, entre elas, assumir a execução das obras de conclusão das instalações do Museu Artístico e Ecológico, criado por ele, em 150 dias após o registro da escritura. Treze anos após a doação, feita em 2009, o projeto ainda não saiu do papel.

Órgão estadual que ficou responsável pelas obras, o Ipac, Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural, respondeu, em nota, que a doação do acervo só foi oficializada em 2017, após a morte do artista. O trabalho de catalogação das obras, suspenso na pandemia, somente foi retomado em 2022, acrescenta o comunicado.

O Ipac argumenta que o processo de desenvolvimento dos equipamentos necessários para revitalização está em curso, bem como a adequação técnica, dos espaços do sítio Natura. A previsão é de que o trabalho seja concluído em dezembro, quando as obras deverão retornar ao local.

Em 2019, reportagem do jornal Folha de S.Paulo apontou que o acervo do artista já sofria com deterioração provocada por infiltrações, cupins e brocas. Naquela época, o governo informou que pretendia retirar as obras do sítio, contra exigência feita por Krajcberg no testamento.

Escultor, fotógrafo, gravador e pintor, Kracjberg chegou ao país em 1948 para recomeçar a vida, depois de perder toda a família, enterrada viva em um campo de concentração nazista durante a Segunda Guerra Mundial.

O artista chegou à velhice se dizendo decepcionado, sem ver seu desejo materializado, segundo expressou em documentário produzido por Renata Rocha, a autora de um processo de união estável post mortem que diz ter tido um relacionamento com Kracjberg de 2009 a 2016.

“Nunca tive ajuda do estado da Bahia, que ultimamente não me dá nem bom dia. Que tristeza”, diz o artista em sua casa em Nova Viçosa, já com a saúde debilitada, em um trecho do filme. A declaração ocorreu um ano antes de morrer no Hospital Samaritano, em Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro.

O Ministério Público da Bahia diz que o Ipac já foi notificado três vezes para se manifestar sobre o cumprimento dos encargos previstos na escritura pública de doação do patrimônio ao estado e sobre os demais fatos, mas não houve resposta.

A decisão do TJ baiano no processo de inventário ao qual a reportagem teve acesso, que corre sob segredo de Justiça, foi assinada pelo juiz substituto da comarca de Nova Viçosa, Renan Souza Moreira, em 27 de abril.

Antes mesmo do atual despacho, o Ipac chegou a emprestar 12 esculturas para um cerimonial de luxo que realiza eventos de alto padrão, como casamentos, mantido pela Fundação Baía Viva, que é administrada pela família do empresário Carlos Suarez, como mostrou este jornal no ano passado.

O magistrado indeferiu pedido de medida cautelar ajuizada pelo responsável jurídico da comissão nomeada em testamento por Krajcberg, o inventariante Ernani Griffo Ribeiro, advogado que acionou a Justiça baiana contra o Estado.

“Aduz o espólio que houve uma retirada indevida e sem autorização legal de todo o acervo do Museu situado no sítio Natura, em Nova Viçosa”, consta no documento de apenas três páginas, em menção aos argumentos apresentados pelo inventariante.

No pedido, o advogado se posicionou contra o transporte de 105 obras de arte para uma exposição no MuBE, o Museu Brasileiro da Escultura e da Ecologia, em cartaz em São Paulo, em comemoração ao centenário do artista, nascido em 12 de abril de 1921.

A primeira oficialização dos bens doados ao estado foi registrada no Tabelionato do Quinto Ofício de Notas, em 2 de junho de 2009, em Salvador, ainda durante o primeiro mandato do ex-governador, hoje senador, Jaques Wagner, do PT.

Em 11 de novembro de 2015, no Cartório de Notas do distrito de Posto da Mata, comarca de Nova Viçosa, o artista atualizou o testamento para nomear uma comissão formada por cinco funcionários que já trabalhavam com ele à época.

Neste último documento, a comissão ficava autorizada pelo artista, em caso de morte, a movimentar contas em instituições financeiras, inclusive, com deliberação de se desfazer de imóveis no exterior, caso houvesse, sob a condição de conservar seu legado.

A reportagem procurou o inventariante, o advogado Ernani Griffo Ribeiro, para saber os motivos pelos quais acionou a Justiça contra o Estado. Numa primeira ocasião, Ribeiro disse estar livre para falar, mas, após pedir à reportagem que se identificasse novamente, afirmou que entraria em audiência.

Na segunda tentativa, o telefone do advogado informava não estar habilitado para receber chamadas. Na terceira, não respondeu aos contatos feitos pela reportagem. O último contato ocorreu nesta terça-feira, para saber se ele pretende recorrer da decisão, mas novamente não houve resposta.

Com o argumento de estar só interessada na preservação do legado do artista, a jornalista Renata Rocha diz preferir não se manifestar sobre o processo de união estável, mas aponta que as condições exigidas na escritura por Krajcberg, em relação à obra dele, não têm sido cumpridas.

“Minha preocupação é quanto ao cumprimento da escritura, em relação à preservação do legado que Krajcberg construiu, algo único no mundo, que traz toda uma carga afetiva, das vivências pessoais dele enquanto um refugiado de guerra que perdeu toda a família”, afirma ela.

Em nota, o Ipac informou que, em 2018, uma das suas primeiras ações foi a contratação de uma empresa para garantir a segurança do Parque Museu Ecológico Frans Krajcberg. No mesmo ano, realizou a higienização do espaço para melhor conservação dos objetos.

Ainda naquele ano, prossegue o comunicado, foi contratada uma empresa em caráter emergencial para controle de pragas em todo o acervo, nos espaços infectados, bem como na área do sítio, para evitar perdas das obras.

Em 2020, continua a nota, o órgão realizou visita técnica para desenvolvimento do projeto de conservação, higienização e salvaguarda das obras, além das estratégias para os acervos, correto acondicionamento e classificação por similaridade, trabalho suspenso na pandemia.

Krajcberg se notabilizou no mundo pela confecção de obras com natureza morta, pela defesa do ambiente natural, com atenção especial aos problemas que atingem a Amazônia, o Pantanal e os povos indígenas, como queimadas, garimpo ilegal e grilagem de terras.

Professor emérito da Universidade Federal da Bahia e membro da Academia de Letras da Bahia, o também artista plástico Juarez Paraíso observa que o valor da obra de Krajcberg, cujo cálculo ainda não foi divulgado pelo Estado, é inestimável.

“Qualquer país do mundo se sentiria privilegiado e empenhado em preservar com muito cuidado, pois suas obras são perenes e não comportam qualquer restauração. O governo não pode usar a desculpa de que não pode medir o valor de uma obra”, afirma Paraíso.

O acadêmico se mostra preocupado com os traslados feitos com as obras, por causa da fragilidade do material utilizado na composição. “São materiais perenes que, se pegos de mal jeito, podem se fragmentar, ao contrário do bronze, por exemplo”, diz.

Depois do MuBE, informa o Ipac, a mostra segue para a reinauguração do Museu Wanderley Pinho, em Candeias, região metropolitana de Salvador, onde serão concluídas a catalogação, preservação e restauração do acervo, antes de as peças retornarem para o sítio Natura, em Nova Viçosa.

Franco Adailton/Folhapress
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