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A empresa alemã está investindo o que lucrou com sua vacina anti-Covid em oncologia, mas sua tecnologia ainda não foi comprovada 18 de junho de 2022 | 18:05

Após vacina contra Covid, BioNTech quer transformar tratamento de câncer

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Ugur Sahin chega à sede da BioNTech na cidade alemã de Mainz na mesma bicicleta surrada que usa há 20 anos.

O desenvolvimento da vacina anti-Covid mais vendida pode ter convertido os fundadores da BioNTech em bilionários, mas o executivo-chefe da empresa de biotecnologia se nega a alterar sua vida pessoal.

Sahin e sua esposa, Ozlem Tureci, a diretora médica da BioNTech, fundaram a companhia em 2008 para criar uma caixa de ferramentas com a qual transformar o tratamento de câncer.

Desde que ficaram famosos, a visão não mudou. Quando eram médicos praticantes, os dois se frustraram com o desnível entre os medicamentos contra câncer disponíveis nos hospitais e o que eles acreditavam ser cientificamente possível.

Assim, embora a vacina de mRNA que desenvolveram com a empresa farmacêutica americana Pfizer já tenha salvado milhões de vidas e reativado economias em todo o mundo, ela de certa forma não passou de um esforço secundário para o casal.

O analista Akash Tewari, do banco de investimentos Jefferies, diz que a BioNTech é “uma empresa focada sobre o câncer que conseguiu suspender tudo o que estava fazendo para criar uma vacina anti-Covid”.

A decisão de fazê-lo valeu à BioNTech uma receita inesperada e sem precedentes; hoje a empresa dispõe de ativos de €19 bilhões, com outros bilhões de receita ainda previstos. É um montante que equivale a “financiamento para toda uma vida”, segundo Suzanne van Voorthuizen, co-diretora de títulos de ciências da vida no banco holandês Kempen & Co.

Alguns bilionários aproveitam sua riqueza para comprar jornais ou financiar aventuras extraterrestres, mas Sahin e Tureci vão utilizar o dinheiro deles para levar adiante seus planos ambiciosos com oncologia, que ainda estão em fase inicial.

Eles estão apostando tudo numa esperança que Sahin admite que no passado mais parecia ficção científica: a possibilidade de personalizar fármacos para o câncer de cada paciente.

Recentemente a empresa deu passos na direção certa com dois ensaios clínicos de fase inicial que renderam dados promissores, um envolvendo câncer pancreático e o outro voltado a tumores sólidos, incluindo cânceres de ovário e testiculares.

O sucesso implicaria numa nova jornada: reimaginar toda a indústria farmacêutica.

“Tivemos a ideia de desenvolver tecnologias dedicadas a salvar cada paciente individual”, diz Sahin. “Porque cada paciente é diferente. Não dá para simplesmente pegar algo pronto da prateleira.”

O DINHEIRO DA COVID

Sahin empurra a bicicleta em volta do perímetro de uma cratera no terreno da empresa, onde serão deitados os alicerces de um novo prédio de 1.900 metros quadrados.

Um laboratório provisório de três andares foi montado em frente à sala de trabalho de Sahin com estruturas pré-fabricadas, para que a missão possa avançar imediatamente: este ano a BioNTech está dobrando para €1,5 bilhão seus gastos com pesquisas e desenvolvimento.

Sahin deixa seu capacete em sua sala, veste um avental branco e vai para o laboratório. Ali uma máquina sintetiza os modelos de DNA utilizados para criar o RNA mensageiro, a tecnologia que a BioNTech ajudou a lançar.

O mRNA atua como um conjunto de instruções transmitidas às células, mandando-as produzir determinadas proteínas. A resposta à pandemia comprovou pela primeira vez que a tecnologia poderia ser usada para criar uma vacina altamente eficaz: o mRNA foi usado numa vacina para ajudar o sistema imunológico a reconhecer e combater invasores como o coronavírus Sars CoV-2. Agora a BioNTech quer usar o código para incentivar as defesas do corpo a enfrentar um tumor.

Diferentemente, porém, de sua rival americana Moderna, que enfoca como utilizar o mRNA com uma série de doenças infecciosas e outras condições, a BioNTech quer usar o mRNA para combater o câncer, trabalhando em conjunto com outras terapias.

Sahin e Tureci pensam que a melhor esperança de uma cura virá da combinação de tratamentos diferentes, incluindo terapias celulares, anticorpos e outras maneiras de modular o sistema imunológico.

Antes da pandemia a BioNTech era uma participante pouco conhecida no mercado farmacêutico global, que movimenta US$ 1,2 trilhão e é dominado por empresas estabelecidas de longa data e que atuam em muitas áreas de saúde simultaneamente.

Em sua oferta pública inicial, em 2019, a BioNTech teve dificuldade em atrair o interesse de investidores, tendo levantado apenas US$ 150 milhões. Dois anos mais tarde ela era a empresa de biotecnologia mais promissora da Europa.

Matthias Kromayer, sócio gerente da MiG Capital, foi um dos investidores fundadores da BioNTech e diz que quando investiu, nem sequer acreditava no potencial do mRNA. Ele deu dinheiro à BioNTech bebê porque os fundadores pareciam compreender como a tecnologia pode mudar a medicina. “A BioNTech não é apenas uma biotech, é uma multitech, e tem sido isso desde o começo. Ugur está sempre pensando dez anos à frente.”

Em abril deste ano a BioNTech anunciou os resultados de um estudo que combinou mRNA com terapia de células CAR-T (terapia de células T com receptores químicos de antígenos) para reprogramar o sistema imunológico de um paciente.

O CAR-T é um tratamento complexo que envolve colher e modificar as células imunes de um paciente para combater seu câncer. Até agora, só teve efeito com cânceres sanguíneos. Mas cientistas da BioNTech criaram um reforço de mRNA que ampliou o número de células imunes e melhorou sua capacidade de matar um tumor sólido, tornando a terapia útil para uma gama muito maior de cânceres.

Brad Loncar é um investidor em biotechs que administra um fundo que enfoca o câncer. Ele descreveu os resultados do estudo como “quase revolucionários”. “É tão interessante que o campo científico inteiro está repensando o combate aos tumores sólidos”, ele diz.

A estratégia da BioNTech é investir em muitas tecnologias diferentes ao mesmo tempo. Sahin emprega a analogia de um smartphone que vai ficando mais útil à medida que você vai descobrindo suas muitas funções. “Você percebe então que ele não é apenas um smartphone, é uma calculadora, é um aparelho que lhe permite fazer qualquer coisa”, ele disse. “Com base nas plataformas poderosas que estamos desenvolvendo, acreditamos que poderemos oferecer muitas soluções diferentes para muitas doenças.”

Falando de modo geral, os fundadores da BioNTech se enxergam como engenheiros do sistema imunológico. Além do câncer e das doenças infecciosas, áreas nas quais a companhia continua a ter uma parceria com a Pfizer para a produção de vacinas, a BioNTech também pretende trabalhar com condições autoimunes e medicina regenerativa, que restaura células danificadas ou doentes. A empresa já está realizando 19 ensaios clínicos em fase inicial e 12 programas pré-clínicos.

Tudo isso é possível graças a seus bolsos agora cheios, diz um banqueiro da área da saúde. Uma empresa que tivesse menos recursos teria que ser mais seletiva e correria o risco de “jogar uma tecnologia fantástica no lixo”. No final de março os ativos da BioNTech já passavam de €19 bilhões, superando até mesmo os €16 bilhões da Moderna e chegando a mais da metade dos ativos das grandes empresas farmacêuticas europeias GlaxoSmithKline, AstraZeneca e Novartis.

Ensaios de terapias contra o câncer custam caro, especialmente se uma empresa precisa primeiro comprar a droga que deseja combinar com seu tratamento. E produtos personalizados como CAR-T têm se mostrado difíceis de levar ao mercado em um sistema de medicina global que está mais acostumado a comprar medicamentos prontos, como bens de consumo.

Com os valores estimados de empresas de biotecnologia caindo este ano, Gareth Powell, gerente de fundos de saúde na Polar Capital, diz que a BioNTech tem sorte por estar em condições de pagar por tantos programas. “Se ela não tivesse o dinheiro das vacinas, imagino que estaria sob pressão forte”, ele diz. “Os mercados de capitais simplesmente não estariam abertos a eles fazerem o que estão fazendo.”

“DINHEIRO NÃO DÁ EM ÁRVORES”

A Bryan Garnier & Co fez parte de um time de bancos que foi o primeiro a colocar as ações primeiro da Moderna e depois da BioNTech no mercado aberto. Pierre Kiecolt-Wahl, co-diretor de mercados de capitais do banco francês, disse que a Moderna adotou um enfoque mais incremental que o da BioNTech, abordando primeiramente as doenças infectocontagiosas, área na qual esperava mostrar sinais de sucesso em pouco tempo que então pudessem persuadir investidores a injetar mais dinheiro.

“A Moderna sabia que dinheiro não dá em árvores”, ele explica. Já Sahin e Tureci, segundo ele, eram mais confiantes de terem dados para combater o câncer.

Mas, mesmo que a BioNTech agora possua recursos financeiros substanciais, seu sucesso no longo prazo não é garantido. Loncar diz que ainda é possível que acabe sendo constatado que o mRNA não funciona realmente contra câncer. “Existe uma chance que não é zero de o mRNA tenha zero efeito contra o câncer”, ele disse. “Se isso acontecer, a BioNTech será muito mais prejudicada que a Moderna.”

A oncologia é muito mais complicada do que a criação de vacinas. Tewari, o analista da Jefferies, a caracteriza como “cientificamente bizantina”. E é um campo altamente competitivo; quase todas as grandes empresas farmacêuticas estão à procura de tratamentos para os mesmos problemas.

O programa de oncologia clínica mais avançado da BioNTech é para vacinas contra câncer. Diferentemente de vacinas comuns, elas não impedem a pessoa vacinada de desenvolver a doença, mas são usadas como tratamento para incentivar o sistema imune a destruir células que passaram por mutações.

Nos ensaios clínicos de fase 2, a BioNTech tem dois programas FixVac, em que as vacinas não são personalizadas, e dois ensaios em que são.

As esperanças de criar vacinas anticâncer já foram frustradas muitas vezes no passado. “Esse é um conceito que existe há décadas”, disse Loncar. “Mas temos visto fracassos sucessivos.”

Ele explica que um problema talvez seja que os tratamentos começam a ser usados quando já é muito tarde. Novos tratamentos normalmente são experimentados primeiro em pacientes que não reagiram a medicamentos anteriores e que geralmente estão com câncer em estágio avançado. Mas Loncar pensa que eles poderiam funcionar melhor numa fase mais inicial, quando o sistema imunológico do paciente está mais forte.

Sahin destaca que a BioNTech já superou vários obstáculos críticos e que seus dados iniciais indicam que as vacinas anticâncer de mRNA estão suscitando respostas imunes várias centenas de vezes mais fortes do que foram relatadas previamente para vacinas de câncer convencionais.

A empresa também está realizando ensaios em cânceres em estado mais inicial e está especialmente interessada em dar as vacinas logo depois de os pacientes terem feito cirurgia para a retirada do tumor primário.

Num ensaio de fase 1 apresentado este mês, a empresa mostrou resultados positivos no tratamento de pacientes com câncer pancreático pouco depois de cirurgia.

Mas além da incerteza científica, a BioNTech vai enfrentar desafios práticos quando tenta perturbar o funcionamento normal da indústria farmacêutica. A empresa terá que pressionar os organismos reguladores para adaptar-se a tratamentos individualizados que romperiam com o molde dos ensaios clínicos convencionais.

Embora esses ensaios geralmente levem vários anos e resultem em um produto aprovado que nunca muda, os fundadores da BioNTech querem poder atualizar seus medicamentos —como se atualiza um iPhone— à medida que novos dados aprimoram os algoritmos que preveem a melhor maneira de atacar um tumor.

Tureci diz que, sempre que ingressa em território novo, a empresa é obrigada a dar passos muito pequenos com organismos reguladores conservadores. “O problema do modo como medicamentos são desenvolvidos é que, quando você finalmente tem algo pronto que pode aprovar para uso com pacientes e levar ao mercado, a tecnologia já está superada em vários anos”, ela explica.

PASSOS MUITO PEQUENOS

Embora a BioNTech não precise pedir que investidores lhe deem mais capital, a empresa ainda terá que administrar as expectativas dos acionistas que a compraram como um ativo anti-Covid. As ações da BioNTech caíram cerca de 20% nos últimos 12 meses, depois de alguns investidores venderem suas participações, prevendo que as vendas da vacina contra Covid iriam diminuir. Mas as ações ainda estão valendo mais que quatro vezes seu valor de março de 2020, quando a empresa primeiro anunciou que estava desenvolvendo uma vacina com a Pfizer.

Loncar, o investidor especializado em câncer, não possui ações da BioNTech principalmente porque elas ainda são vendidas como ações ligadas ao Covid. Ele acha que os acionistas podem ter uma surpresa.

“Os investidores ficaram mal-acostumados com a rapidez do sucesso das vacinas contra Covid e sua lucratividade. Não é essa a trajetória normal do desenvolvimento de medicamentos. Uma coisa que me preocupa é que eles têm uma base de acionistas hoje que espera que eles tenham sucesso igual amanhã em coisas não ligadas à Covid.”

Sahin procura encarar as ações da empresa com otimismo. Diz que checa o preço delas mais ou menos uma vez por semana, muito menos frequentemente do que checa os sites de periódicos médicos. E ele observa que a empresa sempre foi transparente com os investidores em relação à sua visão real.

“Não podemos dar garantias a eles sobre o que vai acontecer na próxima temporada de Covid. Isso depende mais do que está acontecendo no mundo e como o vírus está evoluindo. Não depende tanto de nossas competências.”

Mesmo assim, ele se surpreendeu recentemente quando as ações subiram porque os investidores previram que a empresa criaria uma vacina contra a varíola dos macacos. A BioNTech não começou a trabalhar sobre uma vacina contra a doença, que está proliferando. Sahin diz que eles estão “preparando-se para estar preparados” para fazê-lo, mas que a doença ainda não dá a impressão de que será um desafio global.

Alguns investidores questionam se a BioNTech vai saber lidar com tanto dinheiro e enfrentar tantos desafios ao mesmo tempo.

Embora a empresa tenha decidido usar a maioria dos lucros da vacina para reinvestimento interno, com apenas duas pequenas aquisições incrementais, ela anunciou planos de devolver quase €2 bilhões aos acionistas em recompras e dividendos. Isso também dividiu a opinião dos acionistas, porque é tão incomum uma biotech com tantos programas em fase inicial de desenvolvimento abrir mão de dinheiro. “Foi péssima ideia”, diz Powell, da Polar Capital. “É um enorme desperdício de dinheiro.”.

Mas analistas dizem que a maioria dos investidores confia nos fundadores que entregaram a vacina anti-Covid em prazo tão curto e escala tão grande.

Van Voorthuizen, da Kempen, diz que a BioNTech é especialmente cuidadosa na estruturação de seus ensaios clínicos para que deem respostas sólidas a perguntas específicas. “Eles interrompem um ensaio se não estiver funcionando”, comenta. “Não dependem de um ou outro de seus programas para garantir o sucesso ou fracasso da companhia.”

O banqueiro de saúde considera que a BioNTech é “de longe a biotech mais instigante da Europa” e que não há fundadores mais inspiradores que Sahin e Tureci. “Eles são insanamente inteligentes e trabalham demais”, ele diz.

Tureci diz que Sahin consegue “absorver” informação e que lê rapidamente dezenas de artigos sobre uma condição de saúde nova. “É como se fosse um aprendizado de máquina que ele faz”, ela comenta, brincando. “Em um fim de semana ele lê toda a história da ciência sobre um tópico determinado.”

Tureci diz também que governos de todo o mundo estão telefonando para pedir conselhos sobre como fomentar suas versões próprias da BioNTech. Mas, do mesmo modo como a empresa surpreendeu o mundo em 2020 ao aventurar-se nas águas desconhecidas do desenvolvimento de uma vacina de mRNA, Tureci diz que agora eles estão mais uma vez lançando-se em terreno desconhecido. E desta vez é pouco provável que o sucesso aconteça na velocidade da luz.

Hannah Kuchler / Folha de São Paulo
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