23 novembro 2024
Economista do Ministério da Economia. Mestre em Economia e Doutor em Administração Pública pela UFBA. Autor de diversos trabalhos acadêmicos e científicos, dentre eles o livro Política, Economia e Questões Raciais publicado - A Conjuntura e os Pontos Fora da Curva, 2014 a 2016 (2017) e Dialogando com Celso Furtado - Ensaios Sobre a Questão da Mão de Obra, O Subdesenvolvimento e as Desigualdades Raciais na Formação Econômica do Brasil (2019). Foi Secretário Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) e Diretor-presidente da Companhia de Processamento de Dados do Estado da Bahia (Prodeb), Subsecretário Municipal da Secretaria da Reparação de Salvador (Semur), Pesquisador Visitante do Departamento de Planejamento Urbano da Luskin Escola de Negócios Públicos da Universidade da Califó ;rnia em Los Angeles (UCLA), Professor Visitante do Mestrado em Políticas Públicas, Gestão do Conhecimento e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Professor, Coordenador do Curso de Ciências Econômicas e de Pesquisa e Pós-Graduação do Instituto de Educação Superior Unyahna de Salvador.
No dia 19/02 a Câmara Municipal de Salvador (CMS) promoverá a segunda audiência pública sobre Projeto de Lei n. 396/15, que cria o novo PDDU. Já a partir de seu regimento, as referidas audiências parecem ter sido programadas para reduzir ao mínimo o nível do debate sobre o Plano. Sua organização revela um profundo desconhecimento do estado da arte dos debates mais consequentes do que se entende por desenvolvimento local, uma vez que se percebe nos procedimentos, o objetivo de tornar endógeno ao campo da hegemonia municipal a centralidade das discussões, pois não há nenhuma indicação formal para a uma consequente interação interinstitucional, a priori.
Tal modelo de “construção” já pôde ser verificado nas audiências realizadas pelo Executivo, quando da elaboração do PL. Nada mais natural, considerando o perfil conservador e elitista do grupo que ora dirige os destinos da cidade. No entanto, não nos parece razoável que esse mesmo modelo venha a ser repetido e imposto à Cidade no processo coordenado pela Câmara, por dois aspectos fundamentais. O primeiro é que a apesar da esmagadora maioria governista, no poder legislativo municipal existem um sem números de artifícios e instrumentos institucionais que permitem um maior enfrentamento político em questões dessa natureza, por parte da bancada de oposição, da sociedade civil, do Ministério Público e da Justiça, se devidamente provocada.
Em segundo lugar, a formulação e execução de políticas públicas municipais possuem sombreamentos e sobreposições de outros arranjos institucionais que impõe certos limites de ação, inclusive, em função do pacto federativo. Os prefeitos por mais poderosos que possam parecer não devem e não podem extrapolar nas suas atribuições constitucionais como gestores das cidades. Ou seja, os mesmos instrumentos legítimos que tem permitido a verdadeira “picúla” entre Estado e a Prefeitura para ver quem inaugura mais encostas na periferia da cidade; o “ninja” que o Ministério das Cidades vem dando na questão do BRT de Salvador; ou, ainda, a disputa de “galinhas gordas” para o apadrinhamento de atrações sem corda no último carnaval, podem ser utilizados para se fazer um combate político mais profundo sobre o modelo de desenvolvimento e expansão urbana necessário para a superação das condições sofríveis de bem estar social da cidade de forma mais eficaz e efetiva.
Dois exemplos ilustram bem essa questão: a chamada requalificação da orla do Rio Vermelho e a histórica inadequação ou ausência de políticas públicas efetivas para o bairro do Comercio. No primeiro caso, a intervenção da prefeitura trouxe externalidades negativas importantes para a população como um todo. A mais visível é redução da velocidade média do transito em uma área já nevrálgica para a mobilidade urbana. Não podemos deixar de registrar, também, a violência sofrida por um dos espaços populares mais tradicionais da região, o mercado do peixe, que foi desfigurado pela imposição de horrorosas caixas de vidro que eles insistem em apelidar de barracas. Não obstante, ainda está por se explicar o destino dos permissionários e as justificativas reais para uma mudança tão radical de modelo de negócios com a substituição dos antigos detentores do direito da exploração comercial da área. Comenta-se que será mais um espaço público vendido às cervejarias. Nada mais sinistro!
A questão do Comércio é muito mais grave. Além da nítida intenção de transformar aquela região num de espaço de convivência para os nossos “walking dead”, a (in) ação dos governos nos parece ser motivada por um acentuado nível de racismo institucional em uma de suas dimensões mais complexas que é o racismo ambiental. De fato, não nos parece haver outra explicação plausível para que uma região tão importante do ponto de vista econômico (principal porto do Estado), do patrimônio cultural, material e histórico estadual e nacional, seja tratada tamanha irresponsabilidade e como se nada representasse para o desenvolvimento da Cidade, exceto se admitirmos o total desprezo das autoridades pelo lugar e pelas pessoas que vivem ali e/ou dali tiram o sustento de suas famílias que, na maioria delas, são negras e pobres.
O fato é que a região do Comercio é uma das mais importantes de Salvador. Ela não é apenas o Elevador Lacerda, o Mercado Modelo e um cartão postal para ser ineficazmente expropriado pelos os nossos órgãos gestores da cultura e do turismo. É fundamental para a economia da cidade baixa e do subúrbio ferroviário que, por sua vez, se conformam numa bacia de mão de obra diversificada para atender as diferentes demandas dos pequenos e médios negócios e de serviços de apoio para as grandes organizações que ainda existem no local. Continua sendo a mais importante porta de origem-destino para pessoas e produtos vindos do recôncavo e das ilhas da lindíssima baia de todos os santos. Tal como a sua população negra, o Comercio insiste em resistir apesar de das (in)ações, políticas públicas mal elaboradas e/ou inconclusas no que diz respeito às “tentativas” de sua requalificação, como a interminável reforma da Feira da Feira de São Joaquim e total ausência dos serviços públicos de conservação, iluminação e limpeza.
De tudo que está sendo dito, o que devemos observar com a devida ênfase é que a responsabilidade de toda essa trama espúria não pode ser atribuída apenas ao legado histórico, a (in) ação do atual governo municipal e a forma e ao conteúdo de suas intervenções já realizadas e sua proposta de PDDU. A ilustração feita com o Rio Vermelho e o Comércio são emblemáticas também porque são dois dos mais importantes espaços da cidade que possuem fortes sobreposições de políticas públicas de âmbito estadual e, particularmente, do governo federal. É imperativo que se registre, por exemplo, que qualquer projeto significativo de intervenção nesses lugares, exige o conhecimento ou aprovação da Secretaria de Patrimônio da União (SPU), na Bahia ou em Brasília, porque partes significativas dos terrenos onde essas benfeitorias são realizadas são de propriedade da União e, só isso, já deveria se constituir num poderoso instrumento do bom combate político sobre o qual o modelo de desenvolvimento para a cidade deveria estar sendo travado, nesses e outros lugares.
Os atores sociais que se apresentam como opositores da gestão municipal ainda não conseguiram enxergar que o debate mais consequente sobre o desenvolvimento urbano de Salvador exige a participação efetiva de organismos dos outros níveis de governo e outras esferas de poder que não estão sob a governabilidade do Prefeito e seus apoiadores. Instituições como o IPHAN, IBAMA e particularmente a SPU – e seus congêneres estaduais – não podem, e não devem passar como meros expectadores das importantes definições do PDDU, tocando a sua (má) burocracia e cuidando de suas respectivas chocadeiras de cargos comissionados para atender a (ir) racionalidade política de Brasília. Perde a Cidade e seus cidadãos porque o debate sobre o desenvolvimento urbano de uma cidade como Salvador, não pode prescindir de uma profunda discussão qualificada sobre a política patrimonial da união, do meio ambiente e do patrimônio histórico e imaterial nacional e estadual, dentre outras, incidente sobre o seu território. Não é simples, mas é assim.