Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Ministra Maria Thereza retoma processo de organização do setor iniciado há mais de uma década e deixado em segundo plano nos últimos anos 23 de novembro de 2020 | 10:36

Ministra quer renovação de cartórios em todo o país

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Menos de uma semana depois de tomar posse na Corregedoria Nacional de Justiça no início do mês passado, a ministra Maria Thereza de Assis Moura publicou um plano de trabalho com um vigoroso programa de modernização das relações entre tribunais de Justiça e cartórios, disputa que envolve poder e dinheiro.

A proposta de mais de 50 páginas, prevista na portaria 53, tem como objetivo estimular, ou se for o caso, forçar a realização de concursos e a renovação dos cartórios em todo o país, muitos ainda controlados por antigos “donos”, vários deles advogados próximos a magistrados com postos de comando nos tribunais.

A ideia da nova gestão é derrubar antigos feudos e assegurar o preenchimento imediato de vagas com base em critérios impessoais e universais, como manda a lei. O país tem mais de 13 mil cartórios, boa parte dos quais controlados ainda por antigos tabeliões ou por gestores interinos com estreitas ligações com magistrados.

“A ministra Maria Thereza (na Corregedoria) pediu minha ajuda e eu pretendo pôr em ordem o setor. Seria arrogante dizer que vamos organizar 100% (dos cartórios) num biênio. Mas existem providências estruturais que são possíveis de tomar para viabilizar os concursos em todos os estados”, afirmou o desembargador Marcelo Martins Berthe, um dos principais auxiliares da nova corregedora do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Além dos novos concursos, a Corregedoria Nacional deve fazer um pente-fino nos concursos já realizados e, a partir daí, induzir os tribunais ao preenchimento das vagas com os novos gestores devidamente aprovados. As medidas são consideradas necessárias porque, em alguns tribunais, alguns setores ainda resistiriam chegada ou à ascensão de novos administradores, sobretudos nos grandes cartórios.

Sem a abertura e competição por vagas, prevalece a velha ordem dos falsos “donos”, que controlam os cartórios desde épocas remotas e tratam as instituições, de caráter público, como se fossem bens particulares. Há casos em que os supostos “donos” incluem os cartórios em inventários, ou seja, como bens pessoais a serem repassados a herdeiros.

Cartórios oferecem serviços extrajudiciais e, na prática, funcionam como uma extensão do Judiciário. Na mistura de interesses públicos e privados, há casos também de antigos titulares ou interinos indicados por desembargadores que promovem longas batalhas jurídicas para atrasar a conclusão de concursos e, com isso, permanecem nos cargos.

“Tudo é uma questão de caso a caso. Há casos que existem desvios. Já se fez várias intervenções para evitar isso. Eu mesmo já participei de casos em que desembargadores que fazem gestões para parentes, amigos ou advogados que ele conheça sejam designados como interinos”, disse Berthe.

O desembargador fez a declaração com base na primeira experiência que teve no Conselho Nacional de Justiça, na gestão do ex-ministro Gilson Dipp, entre 2009 e 2010 e em correições no Tribunal de Justiça de São Paulo, ainda nos anos 90.

Algumas disputas se prolongam mesmo depois da conclusão dos concursos e a seleção dos aprovados. Cartorários reclamam que, quando obtêm classificação suficiente para ocupar cartórios maiores, muitas vezes são alvos de processos administrativos arbitrários. Os processos abertos nas corregedorias seriam um poderoso mecanismo para travar a ascensão dos tabeliões de pequenos cartórios para unidades de maior rentabilidade.

A Corregedoria Nacional ainda não tem dados específicos sobre a situação. Mas os feudos e as brigas por cartórios mexem com os nervos e os bolsos de pessoas em quase todos os tribunais estaduais. Entre os estados que mais acumulam problemas estariam Alagoas, Maranhão, Piauí, Santa Catarina, Ceará e Tocantins. São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul iniciaram o processo de modernização mais cedo e teriam já resolvido os conflitos mais complexos.

Alagoas é considerado um caso emblemático da resistência de parte do Judiciário aos ventos da modernização. Recentemente todos os desembargadores do Tribunal de Justiça se declararam suspeitos ou impedidos de presidir um concurso para mais de 200 cartórios do Estado. Todos teriam alegado algum tipo de vínculo com a questão dos cartórios e, por isso, não teriam a devida isenção para coordenar a seleção dos novos cartorários.

“Quase deram um xeque-mate no Conselho Nacional de Justiça”, lembrou Berthe.

Diante do impasse, o Conselho Nacional convocou o próprio desembargador, que é de São Paulo, para desatar os nós. Berthe abriu o concurso, que recebeu mais de 6 mil inscrições de pessoas de todo o país. O certame só foi suspenso por causa da pandemia de coronavírus. O desembargador garante, no entanto, que conclui o processo seletivo em 2021, mesmo com alguns casos já em disputa na Justiça.

A operação pente-fino da Corregedoria Nacional sobre os concursos deverá mapear outros focos de resistência e, a partir daí, buscar soluções negociadas ou, em último caso, intervir como aconteceu em Alagoas. O trabalho estará sob a responsabilidade da Coordenadoria para os Serviços Notariais e Registrais, criada pela ministra Maria Thereza.

A criação da coordenadoria, aliás, já é um dos mais fortes indicativos da prioridade que o tema terá durante a nova gestão. Ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é discreta e dificilmente fará declarações retumbantes sobre moralização no setor. Mas, com um perfil linha dura, a expectativa é que enfrente as questões mais espinhosas, mesmo a contragosto de setores do Judiciário.

O primeiro choque de modernização das relações entre tribunais de Justiça e cartórios foi conduzido pelo ex-ministro Dipp com o auxílio de Bethe. Por ordem do ex-corregedor, hoje ministro aposentado, mais de cinco mil cartórios foram declarados vagos e, portanto, deveriam ter suas vagas preenchidas mediante a realização de concursos públicos. As decisões do ministro provocaram grande rebuliço no setor e, de fato, alguns tribunais tiveram que abrir os primeiros concursos para cartorários.

Hoje, mais de uma década depois dos primeiros passos, o quadro geral indica estagnação. A renovação dos cartórios teria sido abandonada ao longo dos anos. A pandemia do coronavírus também adiou alguns processos seletivos previstos para este ano. Com isso, muitos cartórios estão sendo administrados por interinos e aguardam o desfecho de intermináveis batalhas jurídicas.

Algumas pessoas que estão na fila a espera de vagas veem com bons olhos as mudanças no Conselho Nacional de Justiça, mas dizem esperar maior atenção das autoridades na contratação de bancas de concursos e na padronização de procedimentos das corregedorias dos tribunais.

Segundo alguns, sem critérios objetivos e de âmbito nacional, um simples processo administrativo disciplinar pode se tornar um poderoso instrumento de retaliação. A abertura do processo, mesmo sem a devida consistência jurídica, pode inviabilizar a carreira de um candidato.

A diretora-executiva da Anoreg (Associação dos Notários e Registradores do Brasil), Fernanda de Almeida Abud Castro considera a realização de concursos e a revisão da portaria 81 do CNJ. Para ela, algumas lacunas nas regras gerais dão margem a contestações judiciais de resultados de processos seletivos.

“Tem concurso que dura 12 anos por causa de decisões liminares. E a coisa não acaba nunca. Isso não pode acontecer”, afirmou Fernanda.

A diretora da Anoreg classifica como essencial também a ampliação do leque de serviços prestados pelos cartórios. Ela argumenta que as instituições têm grande capilaridade e poderiam assumir algumas tarefas que hoje sobrecarregam a Justiça. Seriam, claro, serviços não relacionados às demandas judiciais.

Representantes da Anoreg e de outras entidades do setor deverão pedir, em breve, audiência à ministra Maria Thereza para tratar a questão.

“Os cartórios podem ajudar muito mais na retirando, do Judiciário, temas que podem ser resolvidos administrativamente”, argumentou.

Principais pontos do plano da ministra Maria Thereza para a modernização dos cartórios

– Criou Coordenadoria para Serviços Notariais e Registrais
– Formou equipe exclusiva de juízes e servidores para cuidar da questão dos cartórios
– Viabilizar a realização de concursos em todos os estados
– Fazer levantamento da situação de cada concurso e verificar se as vagas foram devidamente preenchidas

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