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O assessor especial do presidente Lula para política externa, ex-chanceler Celso Amorim 18 de abril de 2023 | 16:47

‘Não somos obrigados a seguir todas opiniões dos EUA’, diz Celso Amorim

bahia

Aos 80 anos, o ex-chanceler Celso Amorim é o diplomata com mais vasta experiência em atividade no Brasil. É também o mais próximo de Lula (PT), que o escolheu para ser assessor especial com a missão de representar o próprio presidente em delicadas missões internacionais.

Amorim comandou o Ministério das Relações Exteriores no governo de Itamar Franco, entre 1993 e 1995, ocupou o mesmo cargo nos dois mandatos anteriores de Lula na Presidência da República, e foi ministro da Defesa de Dilma Roussef (PT).

Nesta entrevista, ele defende a posição de Lula sobre a guerra da Ucrânia e afirma que as críticas do mandatário não são apenas à posição dos EUA e da União Europeia em relação ao conflito.

Diz que críticas já foram feitas em alto e bom som à Rússia, que invadiu o país vizinho, e que o Brasil até mesmo acompanhou os países ocidentais em uma condenação ao ato na ONU.

Ele afirma, no entanto, que é preciso buscar a paz, e que “sanções” ou a insistência em “derrotar a Rússia” não vão resolver o assunto.

“O que você quer? Uma vingança? Dar uma lição?”, afirma ele sobre a postura dos países ocidentais no conflito. “A última vez que se tentou isso [com o Tratado de Versalhes depois da derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial] deu no que deu”, afirma.

Amorim afirma também que o Brasil reconhece a importância do papel dos EUA, que reconheceram o resultado da eleição presidencial brasileira quando ela estava sob questionamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Mas isso, no entanto, não obriga o Brasil a seguir os interesses norte-americanos nas questões internacionais.

“Não houve nenhum pacto”, afirma ele.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

RECADO

O coordenador de comunicação estratégica do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, John Kirby, afirmou que as declarações do presidente brasileiro sobre a guerra da Ucrânia eram profundamente problemáticas e que ele está “papagueando” as propagandas da China e da Rússia sobre o conflito. Lula está falando verdades inconvenientes, ou está repetindo o que interessa a esses dois países?

Eu não vou entrar em polêmica com o assessor de imprensa lá da Casa Branca. Deixa ele pensar o que ele quiser.

Mas, na realidade, a posição do presidente Lula é muito clara: é uma defesa dos interesses brasileiros e da percepção brasileira em relação ao mundo. É a defesa de um mundo multipolar, que tem a ver, inclusive, com a questão da dolarização ou da desdolarização de parte das relações econômicas [entre os países].
E tem a ver também com a busca de um equilíbrio no mundo, [com a tentativa de] contribuir para que ele seja mais equilibrado.

Com relação, especificamente, à guerra, a nossa busca é pela paz. O Brasil condenou inúmeras vezes e em inúmeras ocasiões [a guerra entre Rússia e Ucrânia].

O presidente Lula verbalizou crítica à ação russa de invadir a Ucrânia. O Brasil defende o princípio da integridade territorial dos Estados. Não há dúvida sobre isso.

ENCONTRO ENTRE LULA E O CHANCELER RUSSO

Lula repetiu as críticas ao chanceler russo Sergei Lavrov, com quem esteve na segunda (17)?

Vamos colocar em perspectiva: o chanceler russo não veio ao Brasil como um emissário [do presidente russo Vladimir Putin].

O anfitrião dele foi o ministro Mauro Vieira [das Relações Exteriores]. Os dois conversaram amplamente, e o que eles disseram depois foi divulgado à imprensa. Ambos.

O encontro do chanceler russo com o presidente [Lula] foi uma visita de cortesia. Eu não vou entrar em detalhes sobre isso [a conversa entre os dois].

Mas a nossa atitude é clara. Nós já votamos resoluções da ONU [condenando a agressão dos russos contra a Ucrânia], ele [Lula] já falou [condenando o ato da Rússia]. Não há dúvida de que o Brasil é crítico.

O Brasil defende a Carta da ONU e o direito internacional.

Agora, o que a gente acha é que não adianta ficar só nisso, ou ficar fazendo sanções, ou querendo derrotar a Rússia. Isso não vai trazer paz. A Rússia é um país muito importante e muito grande, além de ser parceiro do Brasil. E você tem que buscar uma maneira de que haja [negociações de paz]. Foi a ênfase do que o presidente Lula falou.

Por que há uma percepção, do senhor e do presidente Lula, de que os EUA e a União Europeia não buscam a paz nesse momento?

Há declarações específicas [de autoridades dos EUA e de países europeus], do tipo “temos que derrotar a Rússia” ou “temos que debilitar a Rússia”. Isso tem variado ao longo do tempo.

Agora, dentro da concepção de que a Rússia errou, a nossa posição é a de fazer com que os países conversem.

A guerra não é uma solução nem para a Rússia nem para a Ucrânia. Essa é a questão do Brasil.

Apenas trabalhar para fortalecer militarmente um lado [o que tem sido feito por EUA e por países europeus], ou para, digamos, impor sanções ao outro, não se contribui para a paz. Não se contribui para a conversa, não se cria um clima favorável à busca de negociações.

E [essas autoridades] acabam, voluntária ou involuntariamente, contribuindo para o prolongamento da guerra.

BUSCA PELA PAZ NA UCRÂNIA

Parte da imprensa dos EUA diz que a ambição do Brasil de negociar o fim da guerra e a paz é ingênua, não está ao alcance do nosso país.

Eu não creio que haja ingenuidade. O que há é boa-fé nas nossas ações, na busca da paz.

Há uma clareza muito grande de que não é o Brasil que vai fazer a paz. Tem que ser um grupo de países.
Releia a declaração conjunta do presidente Lula e do presidente da China, Xi Jinping, que fala que os dois países apoiam os movimentos todos para a paz e convida outros países a se juntarem a esse esforço.
Claramente não é uma coisa que o presidente Lula fará sozinho.

Agora, ao contrário do que dizem até certos editoriais, o Brasil é um país importante, é um dos cinco maiores países do mundo em território, enfim, é um país muito respeitado internacionalmente.

Ocorre que, neste caso [da guerra], a União Europeia adotou um partido.

Eu não estou dizendo que ela está errada em criticar a ação específica [da Rússia contra a Ucrânia].
Mas você tem que fazer isso de uma maneira que não impossibilite a paz.

O que você quer? Uma vingança? Quer dar uma lição?

A última vez em que se tentou uma política desse tipo, que foi depois da Primeira Guerra Mundial, com o Tratado de Versalhes [em que países vitoriosos na guerra impuseram duras condições à Alemanha], deu no que deu depois [a ascensão de Adolf Hitler ao poder]. Deu nesse sentimento de rancor e de ressentimento.

Nós achamos que não é por aí.

Quais as limitações do Brasil nesse cenário?

Muitas vezes, para fazer a paz, você precisa de um pouquinho de dinheiro para ajudar na reconstrução [de países destruídos pelos conflitos]. E isso o Brasil não tem.

Nós temos, sim, uma capacidade de diálogo que é parte da nossa história, que é uma história de paz com seus vizinhos, de mediação, de procurar soluções pacíficas para os conflitos, como está na nossa Constituição e também na Carta da ONU.

Portanto, se juntarmos um país como a China, que tem uma capacidade de persuasão forte, e países como o Brasil… Por exemplo, a troica do G20 hoje é Indonésia, Índia e Brasil. Podemos juntar também a África do Sul.

Quando se diz “há uma reação muito forte” [às declarações de Lula], é uma forte reação ocidental. Agora, se você vai ver o que estão pensando os indianos, os africanos e muitos outros que talvez não tenham as mesmas condições de se exprimir, a visão não é a mesma.

MUNDO MULTIPOLAR

Os EUA não entenderam a posição do Brasil? Ou o presidente Lula não usou bem as palavras? Ou ainda, os EUA não estão interessados de fato na paz?

Eu não sei, nem posso ficar fazendo julgamento sobre os outros.

Eu acho que é uma visão diferente, sim, da visão brasileira.

É uma diferença de visão no seguinte sentido: nós queremos um mundo equilibrado e multipolar, porque é o que mais interessa ao Brasil. Claro que o Brasil, ele próprio, não vai ter força para criar esse mundo. Mas ele pode contribuir para um mundo que não esteja dividido em uma “guerra fria”, entre os bons e os maus.

Essa não é a política histórica do nosso país. O Brasil historicamente, até mesmo durante o governo militar, evitou adotar uma política desse tipo.

No caso [da Independência] de Angola, o Brasil reconheceu o governo angolano. E os EUA abominaram, porque ele se dizia marxista-leninista. Nós queríamos a paz, desde aquela época.

Nas condições do mundo atual, da economia e de vários outros aspectos, interessa ao Brasil trabalhar por um mundo multipolar.

Nossa voz será mais ouvida nele do que em um mundo dividido por uma guerra fria entre os bons e os maus.

Um mundo multipolar interessa aos EUA?

É curioso isso. O [ex] presidente [Barack] Obama chegou a usar essa expressão em uma determinada ocasião.

Não há uma visão única sobre esse tema nos Estados Unidos. E o que nós temos dito não é muito diferente do que o ex-secretário do Estado Henry Kissinger disse, sobretudo no começo desse conflito, em relação à ideia de que você tem que buscar soluções pacíficas, e não provocativas.

Por exemplo, sobre a expansão da Otan [aliança militar de países ocidentais]: eu concordo com o Kissinger.

O Kissinger é esquerdista, é comunista, é antiamericano? Não. Mas nós não achamos que isso [expansão da Otan] contribui para a paz, porque cria mais tensões.

Isso justifica a invasão [da Ucrânia pela Rússia]? Também não. Por isso que nós somos a favor da solução pacífica.

É uma coisa complicada porque você tem que reconhecer interesses e preocupações das várias partes, e ao mesmo tempo fazer com que as normas básicas do direito internacional —não regras inventadas e depois mudadas por um ou outro país— sejam seguidas.

É o que a gente tenta fazer.

Nós não vamos ter um uníssono com todos, mas, por exemplo, com a China houve um muito bom entendimento.

Ao contrário do que se pensa às vezes, a China não está só empenhada em derrotar os EUA ou coisa que o valha.

Há uma competição, não há dúvida. Não sou ingênuo de não ver isso. Mas a China é o país que mais cresceu como a globalização. E a globalização depende da paz.

A nossa posição em relação a isso, ainda que partindo de óticas ou de pontos diferentes, ela se aproxima [à da China], porque nós também queremos a paz. Nós não queremos uma guerra fria nem queremos fazer opção [por um dos lados do conflito].

Em muitas coisas, os Estados Unidos são um parceiro excelente do Brasil.

Se você pegar a política social e econômica do presidente [Joe] Biden, nós temos muita coincidência com ela.

A atitude positiva do governo Biden em relação ao processo eleitoral no Brasil, nós reconhecemos.

Agora, isso não nos obriga a ter que seguir todas as opiniões que eles têm. A gente pode divergir, como divergimos em outras coisas, em negociações comerciais e em outras questões.

Os países têm interesses, e para o Brasil não é interessante uma guerra fria.

Veja o nosso agronegócio: ele exporta [muito para a China] e tem conseguido posições.

É claro que a gente não vai vender os nossos princípios por isso. Mas também não vamos entrar em provocações e em conflitos inúteis.

DEFESA DAS ELEIÇÕES BRASILEIRAS PELOS EUA

Há relatos de que diplomatas dos EUA invocam o fato de o governo deles ter reconhecido a eleição do presidente Lula, como se fossem os fiadores da nossa democracia, e que agora estariam enfurecidos. Eles teriam outra alternativa? Eles apoiariam um golpe?

A nossa democracia é uma responsabilidade brasileira, basicamente.

Agora, não há dúvida de que a posição americana, dos EUA, tem influência no Brasil. Tem influência em todos os setores da vida brasileira.

E eles tornaram uma atitude correta em relação ao processo eleitoral brasileiro, e isso é positivo.

Aliás, não foram só os EUA. Foram eles e toda a comunidade internacional. Eles e a torcida do Flamengo, como se diz no Rio de Janeiro.

E isso não vincula o presidente Lula às posições americanas.

É claro que não. Não houve nenhum pacto de dizer: “Olha, nós apoiamos o processo eleitoral e vocês vão nos apoiar no nosso conflito contra a China”. Não. Cada país tem a sua opinião e tem o direito de discutir civilizadamente. De poder divergir.

A gente vai discutindo, vai vendo e vai falando. Quanto mais parceiros a gente tiver, melhor.

A União Europeia também reagiu às posições do Brasil. Poderia haver alguma retaliação ao Brasil?

A União Europeia não tem uma posição muito única [sobre a guerra da Ucrânia], não é? Vamos ser objetivos.

Por exemplo, o presidente da França, [Emmanuel] Macron, esteve na China e conversou por muito mais tempo do que nós com o Xi Jinping. E voltou [à França] também falando que era importante afirmar a autonomia estratégica da Europa.

Disse que a Europa não consegue resolver seus próprios problemas, se referindo à Ucrânia, e que portanto não tem que se meter em Taiwan.

Eu imagino que em Washington houve pessoas que não gostaram. Mas isso é normal. Não é uma hostilidade. É uma busca de defesa do interesse de seu próprio país.

O presidente Lula tem conversado frequentemente com os europeus. Ele mesmo está indo à Europa agora de novo, a Portugal e à Espanha, Teve contatos com o chanceler alemão, com o primeiro-ministro [Olaf Scholz], com o presidente Macron, com o próprio [presidente da Ucrânia] Volodimir Zelenski também.

Nós conversamos com todos.

IDA À UCRÂNIA

A Ucrânia convidou Lula para visitar o país e ver a guerra de perto, e a Rússia também gostaria da presença dele e um fórum econômico em São Petersburgo. Qual é a chance de essas viagens acontecerem?

Eu não posso bater um martelo em torno disso, porque essas coisas, às vezes, evoluem.

Mas, no momento, o presidente Lula, pessoalmente, não tem nenhuma viagem planejada para essa área. No momento, não. Que eu saiba, não há planos.

Mônica Bergamo/Folhapress
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