22 dezembro 2024
Em videoconferência com governadores do Nordeste na segunda (23), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) deu um sinal de paz, ressaltando a necessidade de união em meio à pandemia do coronavírus.
Indicava, enfim, um gesto de conciliação com os chefes dos Executivos estaduais.
O armistício durou quase nada. Em pronunciamento em rede nacional na terça (24), o presidente retomou o tom beligerante. Atacou os mandatários dos estados e disse que eles precisavam “abandonar o conceito de terra arrasada”.
Na quarta (25), em videoconferência com os governadores do Sudeste, o clima azedou ainda mais. “Saia do palanque”, disse Bolsonaro a João Doria (PSDB-SP), que, por sua vez, recomendou equilíbrio ao presidente e disse que não admitiria o confisco de respiradores.
Conflitos entre presidente e governadores são frequentes nos 130 anos de República. O Brasil tem vivido episódios semelhantes ao que se vê hoje, a tensão crescente entre Bolsonaro e governadores como Wilson Witzel (PSC), do Rio de Janeiro, e Doria.
No entanto, o que merece atenção, como mostram historiadores ouvidos pela Folha, não é a recorrência desses embates, e sim o contexto em que aconteceram. Disputas entre o poder federal e o estadual ocorreram em cenários de autoritarismo ou situações próximas disso.
Os confrontos mais acentuados entre a Presidência e os governos estaduais se deram em três circunstâncias principais: 1) sob regimes ditatoriais, como o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937 a 1945) e os governos dos militares (1964 a 1985); 2) com o país sob estado de sítio, como ocorreu na gestão Arthur Bernardes (1922 a 1926); 3) com o país prestes a mergulhar num regime autoritário, como aconteceu em 1930, quando governadores como Getúlio Vargas (RS) e João Pessoa (PB) se insurgiram contra o presidente Washington Luís —o desfecho foi a Revolução de 30.
“A democracia sempre se dá mal quando há conflito intenso entre presidente e governadores. Ao olhar nossa história, não se vê um único confronto desse tipo que tenha acabado bem”, afirma a historiadora Heloísa Starling, professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
“Numa democracia, o que se faz é negociar”, complementa a co-autora de “Brasil: Uma Biografia” (2015). De acordo com ela, “ameaça a governadores é algo próprio de governos autoritários”.
Starling cita a cerimônia de queima das bandeiras estaduais em 27 de novembro de 1937, no Rio de Janeiro. Com um coral regido por Villa-Lobos, o evento protagonizado pelo ditador Getúlio Vargas se tornou um emblema da fase inicial do Estado Novo.
Aqueles foram anos em que o mandatário gaúcho escalou seus homens para atuar como interventores dos Estados, arrancando os governadores do poder.
Esse não foi, contudo, o primeiro momento de choque entre o poder nacional e as esferas estaduais na República. Como lembra Claudia Viscardi, professora de história da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e especialista em Primeira República (1889-1930), Hermes da Fonseca promoveu a “política de salvações”.
Com um mandato que se estendeu de 1910 a 1914, o marechal fez do “salvacionismo” um movimento contra a política dos governadores —corrupta, segundo Fonseca.
Ele promoveu intervenções em estados como Alagoas e Bahia. Houve intensa luta armada no Ceará, que foi tomado por tropas federais.
Viscardi menciona ainda o governo de Arthur Bernardes, que correu quase todo sob estado de sítio, um recurso que dá mais poderes ao presidente e que deveria ser usado apenas em ocasiões muito específicas.
Bernardes levou adiante intervenções em estados como Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Bahia.
“Tanto Hermes da Fonseca quanto Arthur Bernardes são formados num contexto extremamente autoritário”, diz a professora.
Ao longo da ditadura militar, foram recorrentes os embates entre Brasília e o resto do país. A tensão entre o Palácio do Planalto e os governos estaduais se estendeu até o desfecho do regime autoritário.
“O protagonismo de Doria e Witzel hoje remete ao destaque de três governadores da época das Diretas-Já, em 1984. Eram eles Tancredo Neves (MG), Franco Montoro (SP) e Leonel Brizola (RJ), que se opunham ao governo de João Figueiredo”, afirma o jornalista e historiador Oscar Pilagallo, coordenador da Coleção Folha – A República Brasileira.
“Assim como os governadores em 1984, os atuais ocupam um vácuo, um espaço político que não foi preenchido por Bolsonaro.”
Mas Pilagallo estabelece diferenças entre os mandatários estaduais daquela época e os que mantêm o poder em 2020. “Tancredo, Montoro e Brizola eram líderes veteranos àquela altura. Já Witzel ainda é um outsider e mesmo Doria tem pouca tradição política”, afirma.
Ele também aponta dissonâncias no tipo de confronto entre os políticos, menos personalizado 36 anos atrás. “Em 1984, esses governadores não estavam contra Figueiredo exatamente, opunham-se, na verdade, à ditadura”, diz o historiador.
Em meio a essa disputa sem sinais de trégua, o saldo, segundo Starling, é negativo para o presidente da República. “No combate à pandemia, Doria e Witzel têm acumulado mais acertos do que erros. Firmam-se como autoridades preocupadas com a sociedade, o que vale também para o prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB). Com Bolsonaro, acontece o contrário.”
De acordo com ela, ao insistir em bater de frente com os governadores, o presidente acaba “esgarçando a democracia”.
Não se trata só de bate-boca, ressalta Starling. “A tentativa do governo federal de reduzir o Bolsa Família no Nordeste [corte posteriormente vetado pelo STF] é uma forma de intervenção.”
Folha de S.Paulo