1 novembro 2024
Lucas Faillace Castelo Branco é advogado, mestre em Direito (LLM) pela King’s College London (KCL), Universidade de Londres, e mestre em Contabilidade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É ainda especialista em direito tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) e em Direito empresarial (LLM) pela FGV-Rio. É diretor financeiro do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) e sócio de Castelo e Dourado Advogados.
A sentença que intitula este artigo, presente nos diálogos de Platão, é repetida com frequência, com se ela encerrasse a discussão sobre a justiça. Em verdade, ela apenas inicia a milenar discussão sobre o tema, suscitando a ideia de que a justiça envolve distribuir bens e direitos de forma adequada. Contudo, o desafio está justamente em definir o que cada um realmente merece ou tem direito. Diferentes ideologias dão respostas distintas ao problema da distribuição da justiça.
Ideologias representam uma visão fundamental da realidade e, por isso, seu núcleo essencial não se sujeita a demonstrações empíricas. Elas não são a realidade, mas uma maneira de vê-la e de interpretá-la sem a qual nenhuma instituição social existiria. O economista Amartya Sen, no livro “O que é justiça”, dá exemplo que demonstra perfeitamente como a base ideológica determina o entendimento do que é fazer-se justiça.
Há três crianças – Anne, Bob e Carla – que brigam por uma flauta. Anne sustenta que deve ficar com a flauta porque ela é a única que sabe tocar. Apenas com essas informações, Sen argumenta que as pessoas considerariam injusto não conferir a flauta à única pessoa que sabe tocar.
Entretanto, mudando um pouco o cenário, introduz-se a informação de que Bob reivindica a flauta por ser o único pobre que não possui brinquedo algum; os demais são ricos e possuem outros brinquedos. Haveria, agora, fortes razões para dar a flauta a Bob.
Em um outro cenário, ficamos sabendo que foi Carla que, com as próprios mãos, durante meses de trabalho, construiu a flauta e só depois de pronta os demais a reivindicam. Carla argumentaria, diz Sen: “esses expropriadores surgiram para tentar me tirar a flauta”. Há fortes argumentos, então, para conferir-se a flauta a Carla.
Embora, rigorosamente, não haja solução auto-evidente, diferentes pontos de vista não arbitrários apresentariam seu entendimento como o “obviamente correto”. Bob receberia o apoio de um igualitarista econômico, Carla de um libertário e Anne, possivelmente, de um hedonista utilitarista. Três modos distintos de ver a realidade social.
Os sistemas legais, inevitavelmente, incorporam ideologias, moldando um modo de distribuição de bens e direitos que poderia ser diferente fosse outra a perspectiva. A aceitação de determinados princípios básicos – dogmas – permite a construção de argumentos e teorias sobre o que é justo.
As constituições, modernamente, conformam a visão ideológica que se quer consagrar em um sistema legal. A interpretação constitucional abrange, por conta disso, considerações políticas, históricas e filosóficas. A interpretação não nasce “ex nihilo”; elas se pautam em conceitos consagrados por ideologias.
Há constituições que não encampam uma única vertente ideológica, como a brasileira de 1988, daí por que são chamadas de ecléticas. Constituições dessa espécie são repletas de conceitos por vezes conflitantes e de alta carga axiológica, trazendo maiores dificuldades de interpretação, uma vez que se amplia a possibilidade de respostas distintas para a mesma questão.
A Constituição de 1988, por exemplo, assegura o direito de propriedade, desde que seja respeitada sua função social. A função social da propriedade é uma limitação ao direito de propriedade tendo em vista o bem comum. A aplicação desse elusivo conceito na resolução de conflitos pode levar a resultados distintos a depender da visão ideológica do intérprete. O que promove ou não o bem comum no contexto do direito de propriedade pode ser objeto de intensas discussões, dada a maleabilidade do conceito.
A complexidade da justiça vai além do que a máxima do título aparenta significar para muitas pessoas. A justiça envolve, primeiramente, o processo de incorporação de valores em um sistema legal por meio de normas que definem o que cada um merece ou tem direito, um processo que, em regra, reflete negociações políticas, sociais e culturais.
Em segundo lugar, a justiça implica a interpretação dessas normas pelo intérprete, que inevitavelmente traz consigo sua própria visão ideológica moldada por contextos históricos, culturais e pessoais, adicionando mais uma camada de complexidade.
Portanto, fazer justiça não se limita a uma operação mecânica como certa leitura superficial da frase “justiça é dar a cada um o que é seu” pode sugerir.