26 novembro 2024
Um dos responsáveis pela aquisição do avião que caiu matando o ex-presidenciável Eduardo Campos virou delator, foi investigado na Lava Jato por elos com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e agora é peça-chave em indiciamento do líder do governo Jair Bolsonaro no Senado, o senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE).
Operador financeiro em Pernambuco, Eduardo Freire Bezerra Leite, 56, conhecido como “Ventola”, chegou a ficar três meses preso após operação da PF em 2016 e firmou posteriormente um acordo de colaboração.
Antes de a polícia bater em sua porta, dirigia uma rede de empresas que, segundo as investigações, eram voltadas para a agiotagem e também para lavagem de dinheiro de empreiteiras.
Também possuía negócios rurais, um deles com Lira.
Os termos do acordo de delação e a íntegra dos depoimentos ainda são sigilosos. O compromisso de colaboração foi firmado ainda em 2017, na safra de delações do período do então procurador-geral Rodrigo Janot. O acordo foi negociado em conjunto com outros integrantes de seu grupo, como o sócio João Carlos Lyra, pivô da negociação do avião usado por Campos.
João Carlos e Eduardo Freire atuavam principalmente por meio de uma empresa pernambucana chamada Câmara & Vasconcelos, que oficialmente prestava serviços de terraplanagem e aluguel de máquinas em obras, mas que na prática servia sobretudo de entreposto para movimentações financeiras de empreiteiras.
Só da construtora OAS, essa firma e uma outra coligada receberam R$ 58 milhões de 2012 a 2016. Ex-executivos da empreiteira, também em delação, confirmaram em depoimentos que a companhia de terraplenagem era usada para movimentações ilegais de caixa dois e propina.
João Carlos disse que a atuação junto ao governo de Campos em Pernambuco (2007-2014) o levou a arrendar uma aeronave para servir à campanha do então presidenciável em 2014 e que posteriormente o PSB, partido do então candidato, iria reembolsar as despesas.
Para concretizar a compra da aeronave Cessna Citation junto aos antigos donos, Eduardo Freire foi artífice. Até uma empresa que no papel trabalhava com pescados, mas que de fato era de fachada, foi usada para transferir dinheiro para os vendedores, do interior de São Paulo.
Uma de suas firmas, a Ele Leite, pagou R$ 728 mil no negócio.
A tragédia com o então presidenciável, em agosto de 2014, trouxe à tona os nomes dos dois ao noticiário político. João Carlos ainda hoje é alvo de dezenas de processos de indenização devido aos danos provocados pelo acidente aéreo, ocorrido em Santos (SP).
Coincidentemente, quase na mesma época da tragédia com o presidenciável, o nome de Eduardo Freire começava a ser mencionado também em depoimentos da Lava Jato no Paraná.
O doleiro Alberto Youssef, pivô da operação, relatou em seu acordo de colaboração que fez um pagamento dentro do esquema da Petrobras para “um agiota” de Pernambuco como forma de beneficiar Arthur e Benedito Lira, seu pai, ambos congressistas pelo PP de Alagoas.
A quebra do sigilo mostrou que empresas de fachada de Youssef haviam repassado R$ 200 mil à Câmara & Vasconcelos entre 2010 e 2011. Segundo o doleiro disse em delação, era um pedido de Lira filho para quitar despesas de campanha.
O relato evoluiu para uma investigação autorizada pelo STF (Supremo Tribunal Federal). Em depoimentos, Eduardo Freire e o deputado, hoje presidente da Câmara, disseram ser amigos.
Em 2015 —portanto antes da prisão—, os dois contaram em depoimentos à PF que o pagamento mencionado por Youssef se tratava somente de um empréstimo. O hoje delator afirmou que pediu que Lira devolvesse os recursos na conta da Câmara & Vasconcelos porque tinha negócios com a direção dessa firma.
O deputado afirmou no depoimento que, pelo que sabia, o amigo trabalhava com “cerâmicas” —o nome de uma das empresas do delator é Camboa Cerâmica.
A triangulação do repasse mencionado por Youssef acabou incluída em denúncia contra Lira apresentada ao STF pela PGR (Procuradoria-Geral da República), na qual o principal foco era o elo do congressista com a empreiteira UTC, integrante do esquema em funcionamento na Petrobras. Eduardo Freire foi mencionado na peça, mas não como acusado formalmente.
A denúncia, porém, foi rejeitada em 2017 pelos ministros do STF Gilmar Mendes e Dias Toffoli sob argumento de insuficência de provas.
A relação com o congressista alagoano era antiga. Em declaração de bens à Justiça Eleitoral em 2014, o deputado dizia ter R$ 300 mil em “crédito com Eduardo Freite B Leie” (sic) referente à devolução de uma fazenda.
No depoimento de 2015, Eduardo Freire afirmou que recebia de Lira cerca de R$ 60 mil por ano por arrendamento de uma propriedade rural.
A prisão do agora delator em 2016 ocorreu no âmbito da Operação Turbulência, que investigou a compra da aeronave usada pelo PSB. As investigações apontaram volume de bens incompatível com seus ganhos e um patrimônio milionário, incluindo helicópteros, automóveis e lanchas.
Além de Lira, Eduardo Freire mais recentemente também teve destaque em outra investigação contra outro aliado de primeira grandeza do governo Bolsonaro, o senador Bezerra, aguerrido defensor do presidente na CPI da Covid.
Seus depoimentos ajudaram a embasar a Operação Desintegração, que fez buscas autorizadas pelo ministro Luís Roberto Barroso, do STF, no gabinete do senador em 2019.
No último dia 31 de maio, a delegada Andrea Albuquerque da Cunha concluiu o relatório da investigação policial sobre o caso indiciando Bezerra e seu filho, o deputado federal Fernando Coelho Filho (DEM-PE) sob suspeita de corrupção, lavagem e caixa dois, entre outros.
O texto do relatório afirma que os dois receberam vantagens indevidas de R$ 10,4 milhões (em valores não atualiazados) no período de 2012 a 2014.
A investigação afirma que os hoje delatores emprestaram em 2012 R$ 1,5 milhão à campanha de Fernando Filho à Prefeitura de Petrolina —recursos que teriam sido reembolsados posteriormente a mando da empreiteira OAS.
Parte desse dinheiro foi destinada à época, segundo a PF, para uma concessionária de veículos dirigida por um primo de Bezerra no interior pernambucano. Candidatos aliados de pequenas localidades do interior também são suspeitos de se beneficiar dos pagamentos.
Em 2014, houve nova negociação com o hoje senador, aponta o inquérito. Eduardo Freire diz ter emprestado outros R$ 1,7 milhão para a campanha do político ao Senado, também sem registro na Justiça Eleitoral.
Em depoimento de delação, Eduardo Freire disse, segundo transcrição: “Apenas aceitou realizar o empréstimo nesse montante milionário por se tratar de um ministro de Estado, que estava se candidatando ao cargo de senador da República, e que gozava de amplo prestigio no meio político pernambucano e nacional”.
Também relatou um encontro com o senador em 2016: “Bezerra comentou que não tinha disponibilidade em dinheiro para quitar sua divida e, como estava com uma oitiva agendada num inquérito da Lava Jato que tramitava no STF para data próxima, não queria entrar em contato com as empreiteiras até que essa oitiva ocorresse”.
Bezerra foi ministro da Integração Nacional de 2011 a 2013, no governo de Dilma Rousseff (PT). A dívida, dizem os delatores, nunca foi paga.
O sócio do delator, João Carlos, também protagonizou denúncia do Ministério Público contra outro político de expressão do Nordeste, o ministro do Tribunal de Contas da União Vital do Rêgo, ex-senador pelo MDB da Paraíba. A delação afirma que a Câmara & Vasconcelos operou propina paga pela OAS para que dirigentes da empreiteira não fossem convocados para depor em uma CPI da Petrobras, em 2014.
O caso se transformou em uma fase da Lava Jato do Paraná em 2020 e em denúncia criminal. A acusação, porém, acabou enviada ao Supremo e arquivada em abril. Rêgo sempre negou as acusações.
OUTRO LADO
Questionado pela reportagem, o deputado Arthur Lira informou, por meio de sua assessoria, que o inquérito mencionado pela reportagem que envolvia Eduardo Freire já foi julgado e arquivado por falta de provas.
“Lira é empresário no ramo da agropecuária —com dados declarados e públicos. Não cabe ao deputado comentar qualquer decisão judicial de uma questão que não lhe compete.”
A defesa de Fernando Bezerra Coelho e de Fernando Coelho Filho disse que o relatório da Polícia Federal no inquérito “não passa de opinião isolada de seu subscritor [a delegada responsável], que inclusive, menciona aleatoriamente valores e fatos sobre os quais admite não ter encontrado indícios suficientes”.
“Essa investigação não passa de mais uma tentativa de criminalização da política, como tantas outras hoje escancaradas e devidamente arquivadas.”
Procurada pela reportagem, a defesa dos delatores Eduardo Freire Bezerra Leite e João Carlos Lyra informou apenas que não pode se manifestar devido ao compromisso de sigilo do acordo de colaboração.
Felipe Bächtold/Folhapress