26 dezembro 2024
Problemas neurológicos estão entre as complicações mais frequentes da Covid-19 fora do sistema pulmonar e afetam mais de 30% dos pacientes. Perda de memória, falta de concentração e atenção, raciocínio lento, sonolência, fadiga excessiva, ansiedade, depressão, dificuldades com linguagem e outros prejuízos cognitivos e cerebrais podem ser efeitos da doença.
As conclusões são de um estudo coordenado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pela Universidade de São Paulo (USP) e publicado recentemente no prestigiado periódico Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). Os sintomas costumam ser associados sobretudo a quadros graves, mas atingem também quem teve quadros moderados ou leves da doença, aponta a publicação.
“A Covid-19 é capaz de modificar o cérebro e sua estrutura cortical com ou sem a presença do vírus no cérebro. A doença é capaz de fazer isso”, afirma Daniel Martins-de-Souza, professor de bioquímica da Unicamp e um dos pesquisadores.
Nos casos em que o coronavírus chega ao cérebro, infecta principalmente astrócitos — as células cerebrais mais abundantes e responsáveis por sustentar e nutrir neurônios. Os neurônios que se alimentam dos astrócitos infectados acabam tendo seu funcionamento prejudicado ou morrendo. Os astrócitos são o principal local de infecção e, possivelmente, de replicação do vírus no cérebro.
“Nem todo mundo com sintoma neurológico teve o vírus no cérebro. Às vezes, o sintoma é advindo da inflamação sistêmica por causa da doença”, explica Martins-de-Souza. “Os casos em que o vírus chega ao cérebro potencialmente podem ser mais graves, mas não podemos afirmar isso com certeza”, observa o biólogo, doutor e pós-doutor em bioquímica pela Unicamp e com experiências de pós-doutorado no Instituto Max Planck de Psiquiatria, na Alemanha, e na Universidade de Cambridge, no Reino Unido.
Os pesquisadores continuarão a acompanhar os pacientes do estudo, o que pode trazer mais respostas no futuro, por exemplo, ao verificar se os efeitos neurológicos serão passageiros ou duradouros. A pesquisa também encontrou indícios de correlação entre Covid-19 e neurodegeneração, mas os dados são preliminares. Ao continuar a investigação, os estudiosos também querem determinar se o vírus causa alterações semelhantes em outros órgãos, o que pode encurtar caminhos de tratamento.
ESTUDO USOU METODOLOGIA DIVERSIFICADA
O grupo de 89 pesquisadores da Unicamp e da USP usou ressonância magnética para comparar a estrutura cerebral de 81 pessoas saudáveis à de 81 que tinham se infectado provavelmente com a cepa original do coronavírus Sars-Cov-2 e estavam se recuperando de quadros leves ou moderados de covid-19 há cerca de dois meses. “Em maior ou menor grau, todos os infectados tiveram alterações cerebrais significativas”, comenta Martins-de-Souza.
Em alguns casos, os exames revelaram atrofia na parte frontal do cérebro, área fundamental para o raciocínio e a atenção e associada com ansiedade e depressão. “Os testes demonstraram mais sintomas de depressão e ansiedade nesses pacientes e conseguimos verificar que não tinha a ver apenas com o fato de estarmos em uma pandemia.”
Parte dos que tiveram a doença também foi submetida a testes de funções cognitivas e teve desempenho pior que os não contaminados. O estudo também analisou a estrutura cerebral de 26 pacientes que morreram de covid-19 e encontrou danos severos em cinco deles. Apenas nos falecidos foi possível identificar ou não a presença do vírus nesse órgão.
Para Pâmela Billig Mello Carpe, neurocientista da área de neurobiologia da aprendizagem e memória que não participou do estudo, um ponto importante do trabalho foi usar diferentes métodos de pesquisa. Por isso, a professora associada da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) diz que “o conjunto de resultados permitiu chegar a uma conclusão mais precisa e, sem dúvida, contribuiu para a ciência mundial ampliar a compreensão da fisiopatologia da doença”.
PIONEIRISMO BRASILEIRO
A pesquisa da Unicamp e da USP foi financiada principalmente pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e durou cerca de um ano e meio. Os trabalhos começaram quando ainda pensava-se que a Covid-19 era uma enfermidade apenas respiratória. Os pacientes analisados foram infectados pelo coronavírus entre março e julho de 2020 e, em média, tinham tido a doença há dois meses.
“O que nos despertou esse interesse em particular foi o fato de os pacientes apresentarem perda de olfato, um mecanismo mediado pelo cérebro. Isso nos fez pensar que poderia ter alguma implicação cerebral”, conta Martins-de-Souza Martins-de-Souza.
Antes de saírem no PNAS, os resultados da pesquisa foram divulgados, em outubro de 2020, como preprint, espécie de prévia do estudo ainda sem revisão por pares, antes de ser submetido para publicação num periódico científico. No entanto, a pesquisa só foi publicada oficialmente na semana passada. Martins-de-Souza destaca o fato de o estudo ser 100% brasileiro e trazer descobertas inéditas.
“A bem da verdade, as revistas científicas não confiaram tanto no dado naquele momento. Depois que outros estudos na área foram divulgados, conseguimos a publicação, mas fomos o primeiro grupo no mundo a divulgar o que a gente divulgou. O preprint já teve 70 citações e tem a parte boa de mostrar quem colocou o pé primeiro na terra”, afirma.
“Ver colegas publicando seus trabalhos nesta revista, bastante reconhecida no cenário internacional, traz bastante orgulho para nós, pesquisadores brasileiros”, diz Matheus de Castro Fonseca, pesquisador Associado no Tianqiao and Chrissy Chen Neuroscience Research Building do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech).
PESQUISA É ESSENCIAL PARA DESENVOLVER TRATAMENTO
A pesquisa não identificou maneiras de evitar ou mitigar danos cerebrais da covid-19, a não ser tentar não pegar a doença. No entanto, a área tem motivado pesquisadores a encontrar novos caminhos.
“Agora que temos um grande número de pacientes pós-infecção para ser analisados, diversos estudos ao redor do mundo têm demonstrado danos crônicos na cognição, memória de trabalho e até mesmo controle de movimentos finos, como tremores”, aponta Matheus de Castro Fonseca, mestre em biologia celular e doutor em fisiologia e farmacologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Ele e Pâmela Billig Mello Carpe observam que estratégias de reabilitação podem ser usadas. “As funções cognitivas em geral podem ser treinadas, pois nosso sistema nervoso tem uma função importante, a chamada neuroplasticidade, que permite que ele se modifique de acordo com os estímulos que recebe”, explica a doutora em ciências fisiológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
“Para o desenvolvimento de tratamentos específicos, é essencial conhecer os mecanismos envolvidos na geração das sequelas, por isso o incentivo à pesquisa é essencial”, completa a professora.