26 novembro 2024
O Black Ordem é um movimento que surgiu na disputa eleitoral de 2021 pelo comando da seccional baiana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e que busca se consolidar como um espaço de suporte e integração aos negros e negras que ingressam no mercado profissional do Direito e de reforço das lutas raciais. Como define o presidente do grupo, o advogado Júlio Vilela, trata-se de um “quilombo jurídico”.
Nesta entrevista exclusiva ao Política Livre, Júlio, que é conselheiro seccional e presidente da Comissão Especial de Relações com a África e a Diáspora da OAB-BA, fala sobre as origens do Black Ordem, bem como os objetivos do coletivo, que pretende ser um lugar tanto de acolhimento e criação de oportunidades para profissionais e estudantes negros como um facilitador ao acesso à Justiça para a população.
“O Black Ordem é um conjunto da percepção de que é preciso aproveitar a posição de profissionais do Direito para agir em prol das pautas raciais dentro do sistema de Justiça baiano”, diz o advogado, que também não foge das questões políticas, inclusive sobre a possibilidade de o movimento entrar na disputa pelo comando da OAB-BA.
Confira abaixo a íntegra da entrevista:
Política Livre – Qual o objetivo do Back Ordem?
Júlio Vilela – O movimento surgiu da necessidade que hoje a Ordem tem de suprir uma grande lacuna que é a de não saber a quantidade de advogados negros e advogadas negras inscritos, bem como de acolhê-los em suas especificidades. Sabemos que somos maioria, mas sabemos também que a realidade de um advogado negro ou negra é totalmente diferente da de um advogado branco ou branca. Isso é por conta do recorte histórico, desde as leis que existiram no Brasil e quando se proibiam negros e negras de frequentar a escola, de estar nos espaços. As políticas afirmativas permitiram os avanços e hoje temos negros e negras acessando as universidades, os cursos de Direito, mas temos também, com isso, um número significativo de negros e negras dentro dessa estrutura em que não se sentem tratados em suas especificidades. Por isso, criamos um grupo jurídico para poder dar esse acolhimento, esse suporte pensando nas peculiaridades que cada advogado negro e negra tem. Esse público termina a graduação e no dia seguinte tem que pagar o Fies, reorganizar a vida e muitas vezes não tem suporte. A maior parte é formada pelo primeiro advogado na família, e tem que dar o resultado para a família e ser bem-sucedido. Criamos o quilombo jurídico, o Black Ordem, para poder fazer esse acolhimento e também o debate sobre as pautas raciais dentro do sistema de Justiça baiano e ampliar nossos espaços.
Esse movimento surgiu em meio à disputa pelo comando da OAB-BA, em 2021?
Existia um coletivo de advogados negros que se organizou por conta do avanço na OAB nacional, onde todas as chapas inscritas para concorrer na Ordem tinham que reservar 30% para negros e 50% para mulheres. A gente se organizou para poder fazer essa disputa. Depois da eleição, a gente começou a fazer parte da gestão e montamos a Black Ordem para trabalhar as pautas reivindicadas no processo eleitoral, para que elas possam ser transformadas em realidade. Digo que surgimos do processo eleitoral, quando a gente se uniu para fazer a “happy ordem” nas quintas ou sextas, no final de tarde, para poder conversar e interagir sobre a política na Ordem, o sistema de Justiça, e tudo acabava em feijoada. Chegamos e dissemos ‘que está tudo bem’, mas que a gente gostaria de ouvir também algo mais baiano além do sertanejo, algo mais parecido com a gente, com a nossa cara. Fizemos uma festa da Black Ordem e esses eventos dobraram a quantidade de advogados e advogadas negras, um público que não frequentava esses espaços. Esse público passou a ser representado. Passamos a homenagear também, depois, pessoas negras do sistema de Justiça, como a doutora Neusa Maria Alves da Silva, a primeira desembargadora negra do Brasil, de Salvador, além de personalidades empreendedoras do movimento que representamos. Foram ações que criaram e fortaleceram o quilombo jurídico, que segue crescendo.
Quais são essas pautas?
A questão da paridade e da equidade na lista sêxtupla do quinto constitucional, para que tenhamos mais advogados e advogadas negros nos tribunais, é uma das principais conquistas já aprovadas na OAB da Bahia. Hoje, a lista que a Ordem constrói tem três mulheres e três homens, sendo que a cada três, uma pessoa tem que ser negra, e antes não existia esse tipo de critério. A gente sabe que a Bahia tem uma quantidade significativa de advogados e advogadas negros e essa disputa por poder muitas vezes é injusta, com gastos, com influência, e é preciso criar mecanismos de inclusão, o que só acontece com organização. Outra pauta em que avançamos foi o termo de interesse e cooperação que assinamos com a Ordem dos Advogados de Moçambique, na África. A gente acredita que precisamos refazer essa história, pois num passado recente a gente veio para o Brasil e a Bahia como povo escravizado. Queremos colher avanços que eles obtiveram lá em Moçambique, a sabedoria deles na África, que é onde tudo surgiu. É um intercâmbio cultural e de legislação inclusive pensando numa perspectiva das empresas brasileiras instaladas lá e o mercado de trabalho. Outro ponto em que avançamos foi na questão de termos uma comissão específica que tratasse da nossa representatividade dentro da OAB-BA.
O comando da OAB-BA, hoje presidida pela advogada Daniela Borges, que teve o apoio do movimento, tem atendido então essa pauta?
Tem havido uma sensibilidade através da nossa militância. Algumas coisas são atendidas, outras não, o que é natural. A paridade e equidade na construção dos eventos e das questões têm sido compreendidas. Na diretoria da Ordem hoje temos uma mulher negra, Esmeralda Maria de Oliveira, homenageada recentemente pelo governo da Bahia (com a Medalha da Ordem 2 de Julho – Libertadores da Bahia), um reconhecimento ao total de advogados e advogadas negras na Bahia. Hoje temos mais de 70% da advocacia baiana formada por negros e negras, então precisamos ter uma representação maior, uma ocupação de espaços maior, o que muitas vezes é impedido pelo racismo estrutural que, infelizmente, é uma realidade.
O Black Ordem hoje já conta com uma sede estruturada?
Existe. Fica no Relógio de São Pedro, na Avenida Sete de Setembro, no edifício Alta Bahia, sala 501. A gente acabou de sair do processo de cessão de uso porque a sala era da Conder. Fizemos um requerimento e fomos atendidos pelo presidente José Trindade, que nos cedeu a sala e somos muito gratos a ele. Utilizamos o espaço como escritório e nosso objetivo ainda, e estamos em processo de formação para isso, é que possamos em breve acolher esses advogados e advogadas negras que não têm condições de formar os próprios escritórios para poder dar orientação sobre os primeiros passos pós-universidade, acompanhar algumas ações. Além disso, em breve esses advogados poderão atender clientes em nossa sede, fazer petições. Ainda não estamos funcionamento plenamente nesse sentido, mas esse é o projeto. Existe a possibilidade de recebermos emendas parlamentares para a aquisição de mobiliário e ainda precisamos também de algumas coisas básicas, como a ligação da luz. Mas estamos trabalhando para viabilizar essas questões.
Recentemente, a Black Ordem apresentou à Desenbahia um projeto para a criação de uma linha de crédito especial para a advocacia negra. Isso já está liberado?
Essa é uma pauta que está avançando. A ideia é que a instituição ligada ao governo do Estado libere até R$ 50 mil para cada advogado e advogada negra, com carência de seis meses para o pagamento. Também estamos dialogando com o Sebrae na Bahia para que seja feito um plano de gestão desses recursos, para que esse dinheiro seja investido pelo advogado e advogada de forma consciente e planejada. A ideia é que, com esse valor, esses profissionais possam montar seus escritórios. Hoje, é muito difícil ter acesso a crédito direto no banco, em função das exigências burocráticas. Esperamos que a Desenbahia abra essa porta.
Como a questão do preconceito religioso aos advogados negros e negras tem sido tratada, sobretudo no que se refere a problemas relacionados à vestimenta e indumentária dos adeptos das religiões de matriz africana?
Acho que avançamos nisso também. Desde 2017 a OAB-BA já permite o uso de turbante, por exemplo. Mas mesmo assim sabemos de casos que em algumas audiências isso não vinha sendo permitido, por isso estamos sempre reforçando essa questão junto ao conselho da Ordem, buscando retirar restrições que existam. Essa questão está evoluindo e precisa ser assim em todo o país. A advogada negra, principalmente, não pode ser desrespeitada dentro de uma audiência, de um fórum, apenas por conta do uso de um turbante, de um torço e outras indumentárias típicas do candomblé.
Você disse que mais de 70% dos advogados na Bahia são negros ou negras. Mas existe um dado oficial sobre isso?
Não, infelizmente não temos esse censo, e um dos objetivos do quilombo jurídico é esse. Temos um trabalho de pesquisa de um colega nosso que faz um estudo sobre os advogados nos escritórios. Ele sai perguntando a quantidade de advogados negros e negras trabalhando. Mas hoje temos essa deficiência na nossa luta, pois um censo facilitaria a construção de políticas públicas com equidade. Mas não temos dúvidas hoje de que a maioria dos advogados e advogadas é negra. Quando vamos aos eventos, aos espaços, notamos.
Isso se deve, em sua opinião, ao sucesso da política de cotas no acesso às universidades, uma vez que sabemos das distorções históricas e da enorme desigualdade mesmo em um estado majoritariamente negro?
Sem dúvida. As políticas públicas que tivemos nos governos anteriores possibilitou que essa juventude pudesse acessar as universidades. E o curso de Direito é sempre visto como uma possibilidade de transformar a vida das pessoas e também de combater essas injustiças históricas e até familiares. Muitos ingressam na carreira para atuar nessa reparação, seja social ou ali o ambiente familiar. A ideia do quilombo jurídico é abraçar essa advocacia que entrou na universidade e depois da formação precisa pagar o financiamento estudantil e tem dificuldades em encontrar um emprego na própria área. Muitos têm a ilusão de que a formação, por si só, vai ser uma transformação na vida financeira e muitos advogados adoecem com a frustração e outros mudam de profissão. Estamos chamando essas pessoas até para mostrar que no mercado existem outros caminhos. Mostramos que a advocacia é feita de forma gradativa. Muitos advogados brancos deixam as universidades e não têm essa dificuldade porque possuem uma rede de relacionamento já estruturada no âmbito familiar, o que não é o caso dos advogados e advogadas negras, e nós também atuamos para ajudar na formação dessa rede.
E em relação à presença de negros entre os magistrados, por que ainda é tão baixa em todas as instâncias?
Tenho grande esperança de que isso mude. De fato, tem muito pouco tempo, dez anos, que o sistema de cotas nas universidades foi implantado, e agora ampliado. E a gente sabe que muitos cotistas, a maioria pessoas negras, têm dificuldades financeiras de permanecer nas universidades e aqueles que concluem precisam trabalhar imediatamente para pagar o financiamento estudantil e produzir o seu sustento ou o da família, e não tem tempo para se preparar para concursos e ingressar na magistratura. Hoje, a disputa é muito grande nos concursos, mesmo existindo também o sistema de cotas. Acredito que isso vai avançar de fato daqui a dez ou 15 anos. Atualmente temos 1,3% ou 1,4% de juízes negros no Brasil. Isso aumenta um pouco quando se coloca também o quantitativo de pardos. E mais: tem ainda a chamada afro conveniência, que é quando o cidadão se declara pardo para se beneficiar das cotas.
Tivemos um negro que chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), que foi o ministro aposentado Joaquim Barbosa, que foi muito duro com quem o indicou no passado, o atual presidente Lula (PT), durante o julgamento do mensalão. Ele é uma referência para o movimento?
Costumo dizer que não importa se o negro ou a negra que ocupa um espaço importante de poder no sistema toma decisões de direita ou esquerda, mas sim o que ele representa. E Joaquim Barbosa cumpriu um papel importante, sim, de romper barreiras e mostrar que podemos chegar e ocupar espaços de poder, de decisão. Claro que sabemos que ali há uma disputa, um jogo de interesses, e muitas vezes o cidadão não consegue colocar em prática tudo aquilo que o movimento deseja que esteja na pauta, mas a presença de Joaquim Barbosa no Supremo foi um marco, sim, e esperamos que isso ocorra cada vez mais.
Se fala muito que Lula indicará, neste terceiro mandato, uma mulher negra para o STF, o que também seria histórico. Você acredita nisso? Esse nome pode ser o de uma baiana?
Esperamos que aconteça porque temos nomes renomados, inclusive na Bahia, dentro da nossa militância no campo jurídico. Temos mulheres negras com currículos extraordinários, que são qualificadas. Antigamente, havia essa dificuldade até por falta de qualificação, de pré-requisitos, mas hoje temos muitas juristas negras na Bahia até com pós-doutorado. Fiquei muito feliz ao saber que o nome da promotora Lívia Vaz, do Ministério Público da Bahia, está sendo lembrado. Tem ainda a conselheira federal da OAB-BA Silvia Cerqueira, outro nome qualificado, advogada negra. Enfim, esperamos que isso aconteça, pois a nossa luta é por ocupação desses espaços.
O número de promotores e procuradores negros e negras na Bahia tem crescido?
Ainda precisamos ter uma maior representatividade no Ministério Público também. Inclusive, tivemos uma iniciativa positiva aprovada recentemente que foi a residência de advogados negros e negras dentro do MP, aprovado pelo Conselho Superior do órgão. Foi uma iniciativa da procuradora Márcia Virgens, com 30 vagas de residência no âmbito da administração superior da instituição. Infelizmente, não temos hoje um percentual de quantos negros estão lá, mas é muito pouco em relação ao número de advogados, mesmo com as cotas. A residência vai possibilitar que o advogado negro e a advogada negra possam ter acesso e acompanhar todo o processo, entender como funciona o órgão e poder disputar com mais igualdade aquele espaço.
Quando teremos um presidente da OAB negro, ou negra? O Black Ordem também tem esse objetivo?
A gente tem feito esse debate de forma madura, tentando construir um nome, fazendo o debate de forma responsável. Porque a nossa ideia não é de fazer disputa política nesse sentido, brigar por esse protagonismo, pois não foi por conta disso que surgimos, mas sim da necessidade de fazer a construção, de ajudar os advogados negros e negras em suas carreiras a criarem e formarem suas redes de relacionamento, de reconhecer que somos maioria. Justamente em função de sermos maioria, precisamos ocupar os espaços de comando, e essa pergunta é natural, bem como esse anseio. A gente acredita de fato que já passou da hora de termos uma pessoa negra no comando da Ordem, o que seria histórico. A eleição de Daniela Borges, que apoiamos, foi um momento histórico, porque trata-se da primeira mulher a presidir a OAB-BA. Então, esperamos que a OAB-BA também seja vanguarda ao ter o primeiro advogado ou advogada da militância negra como presidente. Temos feito esse debate, mas amadurecendo a ideia, ouvindo outros movimentos sociais com os quais atuamos em sintonia. Hoje, a nossa prioridade é fazer do quilombo jurídico um espaço para compartilhamento de experiências com os colegas que estão iniciando a carreira, facilitando contatos, gerando oportunidades, inclusive em áreas da atuação do Direito desconhecidas por muitos que saíram das universidades, como a questão internacional, extrajudicial.
Qual a avaliação que o movimento faz da atual gestão da OAB-BA?
Apoiamos Daniela Borges na última eleição. A gente ainda não parou para poder fazer uma avaliação sobre a gestão porque estamos focados em avançar nos debates raciais, nas pautas que a gente defendeu no período eleitoral. Precisamos parar para fazer essa análise política. É natural que num ambiente de disputa de poder você não consegue tudo o que quer, avançar em todas as pautas, mas algumas são inegociáveis, como a questão da paridade e equidade em todos os espaços da Ordem. A OAB-BA tem avançado nisso, embora ainda de forma lenta, mas ainda não paramos para fazer uma reflexão sobre a gestão. Nas comissões da Ordem, por exemplo, a gente tem visto um número ainda muito abaixo de presidentes negros e negras e essa é uma das nossas pautas. Algumas coisas dependem de eleição, como uma maior representatividade nos conselhos, mas outras não, como é o caso das comissões. Entendemos que os negros e negras precisam ocupar cada vez mais espaços de poder dentro da OAB, precisam cada vez mais ser ouvidos e participar das decisões, até porque somos maioria também no colégio eleitoral da Ordem.
Política Livre