17 abril 2025
A decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de arquivar o inquérito que investigava o suposto esquema de fraude no cartão de vacinação de Jair Bolsonaro deu novo impulso à estratégia da defesa em relação à acusação mais grave contra o ex-presidente: a de tentativa de golpe de Estado. Para criminalistas ouvidos pela reportagem, os advogados devem usar a nova decisão de Moraes para reforçar os questionamentos sobre a delação de Mauro Cid e embasar pedidos de nulidade, já que a investigação das vacinas forneceu provas que sustentaram a denúncia aceita pelo Supremo, a qual tornou Bolsonaro e outras sete pessoas réus.
Moraes atendeu ao pedido do procurador-geral da República, Paulo Gonet, e determinou o arquivamento do caso na última sexta-feira, 28. Gonet argumentou que a Polícia Federal (PF) não encontrou provas que confirmassem as declarações de Cid, que afirmou, em delação, ter agido a mando do ex-presidente para inserir dados falsos de vacinação em seu nome e no da filha na plataforma do Sistema Único de Saúde (SUS), supostamente para facilitar a entrada de Bolsonaro nos Estados Unidos. Preso em 2023 no âmbito da Operação Venire, que apurava esse caso, Cid firmou, em seguida, um acordo de colaboração premiada, que passou a abastecer outras frentes de investigação com depoimentos e provas, inclusive com elementos que municiaram a denúncia do golpe.
Na mesma decisão em que pediu o arquivamento, Gonet ressaltou que não invalidou a colaboração de Cid no que diz respeito às informações utilizadas na denúncia sobre a tentativa de golpe de Estado, argumentando que os relatos do ex-ajudante de ordens foram corroborados por provas produzidas pela PF. O entendimento foi acompanhado por Moraes, relator dos inquéritos tanto das vacinas quanto do golpe.
O criminalista David Metzker pondera, no entanto, que o arquivamento do caso das vacinas revigora a linha de defesa que busca anular a delação premiada de Mauro Cid. Em sua avaliação, a estratégia deve seguir por duas frentes: no campo político, ao reforçar a narrativa de que Cid teria mentido na delação; e no jurídico, ao reacender os questionamentos sobre a validade da cadeia de provas construída a partir da colaboração.
Metzker explica que a delação de Cid serviu como base para o avanço de diversas investigações contra Bolsonaro, como a acusação de tentativa de golpe e o caso das joias sauditas.
O criminalista destaca que, ao arquivar o inquérito que originou a prisão de Cid, a PGR indiretamente fortalece a tese da defesa de que os elementos fornecidos pela colaboração estariam contaminados desde a origem. A alegação dos advogados de Bolsonaro é que Cid teria sido coagido a colaborar e mudado versões ao longo do tempo, o que violaria uma das premissas da colaboração premiada: a voluntariedade.
Dessa forma, explica, o arquivamento do caso das vacinas reforça a tese de que o inquérito original teria sido instaurado sem base sólida — o que, segundo a defesa, configuraria um vício de origem capaz de comprometer toda a cadeia de provas.
O episódio também pode ser usado para sustentar a narrativa de pesca probatória, segundo a qual autoridades teriam usado uma investigação frágil como pretexto para acessar dados e avançar sobre outras frentes contra o ex-presidente. A defesa alega que a apuração sobre as vacinas serviu apenas como pretexto para prisões, apreensões de celulares e coleta de documentos, com o real objetivo de abastecer a investigação sobre a tentativa de golpe.
“De fato, o arquivamento do caso das vacinas pela PGR, com base na ausência de provas que corroborem a delação de Mauro Cid, pode ser explorado pela defesa do ex-presidente como argumento para tentar enfraquecer a credibilidade das demais colaborações feitas por ele. No plano simbólico e estratégico, isso tem algum efeito”, afirma Metzker.
O advogado de Bolsonaro, Celso Vilardi, já havia levantado a questão da nulidade da delação de Cid durante o julgamento na Primeira Turma do STF que tornou o ex-presidente réu, citando os áudios revelados pela revista Veja, em que Cid afirmava ter feito a colaboração sob forte pressão do Supremo. O ex-ajudante de ordens, porém, recuou, afirmando que a mensagem era apenas um desabafo direcionado a pessoas próximas.
“Ele quebrou a delação. A lei não autoriza o delator a falar com irmão, nem com cunhado, nem com a mãe. Ele estava proibido de ter contato até com o pai. Se isso foi vazado, a responsabilidade é dele. Ele falou, mentiu, omitiu e se contradisse, segundo a PF”, disparou Vilardi.
Embora a Primeira Turma tenha rejeitado a preliminar, o ministro Luiz Fux sinalizou que poderá reavaliar o tema ao longo da ação penal, ao criticar a delação de Cid. O ministro mencionou as contradições nos nove depoimentos prestados pelo ex-ajudante de ordens e afirmou que Cid será ouvido durante o processo para esclarecer a coerência de suas declarações.
O professor de Direito Penal da USP Gustavo Badaró concorda que a defesa deve explorar a delação de Mauro Cid após o arquivamento do caso das vacinas, mas avalia que, neste momento, o impacto sobre o processo da tentativa de golpe é limitado. O jurista explica que os investigadores conseguiram reunir provas independentes que corroboram os depoimentos de Cid, o que diminui a chance de efeitos imediatos sobre o material já produzido pela PF.
Ainda assim, Badaró pondera que a delação poderá, futuramente, ser usada para tentar anular o processo. Mesmo com a corroboração por outras provas, questionamentos sobre a obtenção do acordo — somados ao arquivamento do caso das vacinas — poderão ser retomados em fases mais avançadas, como nas alegações finais ou em eventuais recursos.
“A discussão sobre a voluntariedade da delação e do arquivamento do caso das vacinas pode não ter efeito agora, mas poderá ser reaproveitada como fundamento para contestar a validade de provas ou do próprio processo lá na frente”, afirma.
A escolha de Celso Vilardi para liderar a defesa de Jair Bolsonaro reforça essa estratégia. O criminalista é reconhecido por sua atuação em casos de grande repercussão, sobretudo por apontar e sustentar nulidades processuais com base em alegações de contaminação da cadeia probatória. Sua atuação foi decisiva, por exemplo, na anulação de provas no caso Castelo de Areia, uma tese semelhante à que agora ganha novo fôlego com o arquivamento da investigação das vacinas. Vilardi também integrou a defesa em casos como o Mensalão e a Lava Jato, mantendo essa mesma linha de argumentação.
Nas redes sociais, o advogado de Bolsonaro, Paulo Amador da Cunha Bueno, se manifestou sobre a decisão no dia em que a PGR pediu o arquivamento. “Hoje o procurador-geral da República requereu o arquivamento da investigação que tratava da suposta falsificação do cartão de vacinas do Presidente Bolsonaro e de sua filha Laura. Nestes autos houve a decretação da prisão preventiva do Ten Cel Art Mauro Cid e sua posterior, polêmica e famigerada colaboração premiada que, espero, ainda seja anulada, dada a falta de voluntariedade do colaborador”, disse.
Bolsonaro e outros sete investigados se tornaram réus após a Primeira Turma do STF aceitar a denúncia da PGR na última semana. O grupo é acusado de tentativa de golpe de Estado, organização criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, dano qualificado ao patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.
Hugo Henud/Estadão