Foto: Joédson Alves/Agência Brasil/Arquivo
Sites de apostas se tornaram populares no Brasil 13 de maio de 2025 | 18:30

Bets usam juiz para manobrar Judiciário e escapar de controle do governo

economia

Casas de apostas barradas pelo Ministério da Fazenda por estarem sob investigação policial adotaram estratégia de manobrar no Judiciário para conseguir um aval para operar sem se submeterem a requisitos exigidos pelo governo.

As investidas incluem direcionar ações a um juiz federal de Brasília com histórico de acolher demandas das bets. Em outra frente, empresas vão à Justiça para transformar em definitivas as autorizações provisórias requeridas dentro de processos administrativos já encerrados.

Em nota, as empresas afirmam que o governo não pode ter critérios próprios para declaração de inidoneidade das bets e a Seção Judiciária do Distrito Federal (SJDF) diz que a distribuição dos processos segue regras do regimento interno, mas não tem elementos para informar a concentração de casos com um único juiz (leia mais abaixo).

A estratégia mapeada pelo jornal O Estado de São Paulo já foi detectada pela Advocacia-Geral da União (AGU), que vê “abuso do direito de litigar” por parte de bets e aponta “estranheza” em decisões judiciais proferidas durante regime de plantão do Judiciário – em tese, restrito para análise de casos urgentes.

Os artifícios fazem com que casas de apostas posterguem ou não paguem diretamente ao governo os R$ 30 milhões de outorga cobrados de cada empresa regularmente autorizada. Com o atalho, elas também deixam de passar pela análise de certidões, histórico e certificações feita na Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA), do Ministério da Fazenda.

Em nota, a secretaria afirmou que as empresas não autorizadas pela pasta “não conseguiram cumprir todas as exigências legais e infralegais criadas para garantir a segurança na exploração comercial dessa atividade” e que a concessão de autorização a elas por outro caminho “representa um risco à proteção dos apostadores e da economia popular”.

A reportagem analisou milhares de páginas de ações judiciais, recursos da AGU, processos administrativos do Ministério da Fazenda e investigações policiais em andamento e detectou esse tipo de manobra por três casas de apostas que reúnem 18 milhões de usuários: VaideBet, BetPix365 e ObaBet.

Os sites pertencem ao grupo BPX, que tem entre os sócios José André da Rocha Neto e Aislla Sabrina Rocha. Ambos foram alvo da Operação Integration, da Polícia Civil de Pernambuco, o que resultou em uma declaração de inidoneidade e um consequente veto do Ministério da Fazenda. A principal casa do grupo é a Vaidebet, ligada ao cantor Gusttavo Lima.

A estratégia das bets do BPX consistiu em empurrar uma ação judicial para o juiz Itagiba Catta Preta Neto, da 4ª Vara Cível da Justiça Federal do Distrito Federal, responsável pela liberação de pelo menos 13 dos 18 sites que foram barrados pelo Ministério da Fazenda.

Catta Preta deu duas decisões favoráveis ao BPX, em uma sexta-feira à noite e em um domingo de manhã, durante o regime de plantão da Justiça, apesar de o caso estar em tramitação regular com um “juiz natural”. Procurado, ele não comentou.

Desde outubro de 2024, os pleitos da BPX já haviam passado pelas mãos de outros quatro juízes federais de primeiro grau, em três processos distintos: Renato Coelho Borelli, Leonardo Tavares Saraiva, Sergio Wolney de Oliveira Batista Guedes e João Moreira Pessoa de Azambuja. Todos negaram os pedidos por não vislumbrarem urgência nem lastro para conceder liminares. Para a AGU, as ações variadas com pedidos repetidos são “abuso do direito de litigar”.

Uma nova ação da BPX para tentar destravar o bloqueio foi protocolada em 24 de janeiro e tramitou por duas Varas sem decisão favorável. Os advogados do grupo então apelaram ao plantão do Judiciário na noite de 7 de março, às 19h27. Catta Preta era o magistrado plantonista e, às 22h19, acolheu o pedido da empresa.

Na avaliação da AGU, trata-se de uma medida deliberada das empresas de apostas. Em recursos, o órgão afirma que a BPX trabalhou para forçar a análise por Catta Preta por causa do histórico dele em favor das bets em ações de outras empresas. “A partir do entendimento da 4ª Vara favorável às empresas, diversas delas buscaram direcionar as demandas àquele juízo”, destacou um parecer.

No dia seguinte à decisão do plantonista, às 14h51 de sábado, 8 de março, a empresa apresentou embargos de declaração (um tipo de recurso para esclarecer ou corrigir uma decisão) pedindo que mais oito pontos fossem contemplados. Entre eles, ganhar direito ao domínio bet.br, que identifica os sites autorizados pelo governo, e poder depositar os R$ 30 milhões não para a União, mas em juízo. Às 6h52 de domingo, dia 9, os pleitos foram atendidos por Catta Preta.

“Causa estranheza tal decisão ter sido proferida em regime de plantão”, destacou a AGU. Em documentos apresentados ao Judiciário, a advocacia da União sustenta que as decisões são nulas por conta de irregularidades do magistrado. Entre elas, o fato de decidir no plantão em processo já apreciado por outros juízes.

“É possível eventual tutela de urgência na seara cível ser apreciada em regime de plantão, desde que a demora possa ‘resultar risco de grave prejuízo ou de difícil reparação’. Qual a urgência inadiável para que não se aguardasse mais um dia – decisão dos embargos fora proferida em um domingo de manhã – para apreciação do requerimento pelo juízo natural?”, indagou a AGU.

A decisão de Catta Preta tem outro ponto considerado por técnicos do governo como um problema grave. Ela cita a necessidade de atender as exigências de uma outra decisão, proferida pelo desembargador Pablo Zuniga, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), do ano passado. Mas essa determinação anterior era restrita a uma etapa do processo administrativo na Fazenda que já caducou.

Essa decisão anterior mencionada afastou o entendimento de que sócios da BPX, dona da Vaidebet, não cumpriam critérios de idoneidade por serem alvos de investigação em Pernambuco.

Entretanto, a decisão do desembargador é de 13 de novembro e se referia a pedido da empresa para funcionar no chamado “período de adequação”, que vigorou até 31 de dezembro de 2024. Desde 1º de janeiro, só podem funcionar no Brasil casas de apostas que cumpriram todos os requisitos para atuar no “período de autorização”.

O Ministério da Fazenda trata esses dois períodos como completamente distintos, com exigências diferentes às empresas em cada um deles.

Para a autorização, a partir de janeiro, por exemplo, as empresas precisaram entregar cerca de 100 documentos, como certidões trabalhistas e fiscais, e comprovar, entre outras coisas, as certificações de regularidade dos jogos que oferecem aos apostadores.

O governo federal nem recorreu contra a decisão de novembro por entender que ela perdeu os efeitos na virada do ano. Mas, em janeiro, a defesa do BPX voltou ao processo para alegar descumprimento da decisão do desembargador. Além disso, pediu a correção de um “singelo erro material” na decisão. O pedido foi atendido pelo magistrado do segundo grau.

“Constato erro material no julgado, tendo em vista que restou consignada a Portaria 827/2024, quando deveria ter constado a Portaria 2.104/2024”, frisou o desembargador.

Uma portaria diz respeito às condições para funcionar no período de adequação (até 31 de dezembro). A outra tem a lista de empresas autorizadas para o início do período da regulação (a partir de 1º de janeiro). Para a AGU, não se trata de um erro material, mas de um “embaralhamento” feito de propósito pela BPX. Portanto, considera um erro tratar a diferença como mero “erro material”.

“O que a empresa pretende é, mediante a aplicação de uma interpretação equivocada das Portarias regulamentadoras do serviço que pretende explorar, seguir operando indefinidamente no mercado, independente de autorização da administração pública e sem mesmo permitir a avaliação dos fatos pelo juízo de primeira instância”, afirmou a AGU em recurso que está pendente de julgamento.

Grupo afirma que foi a plantonista para não perder prazo

Em nota, o grupo BPX explicou que recorreu ao plantão judiciário com base no critério do governo que dava um período adicional de 60 dias para que “empresas com pequenas divergências documentais” pudessem operar até a regularização. Disse, ainda, que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região ratificou a decisão do plantonista.

“Com a aproximação do fim desse prazo, e diante da ausência de manifestação do juízo titular – fato que persiste até a presente data -, foi apresentado pedido ao juízo plantonista, com o objetivo de evitar qualquer alegação de operação irregular por parte do BPX”, destacou.

A empresa dona das três casas de apostas também manifestou que o governo “não pode ter conceitos próprios sobre presunção de inocência, idoneidade e reputação ilibada, desconsiderando a ordem constitucional vigente, bem como os conceitos básicos de direito administrativo sobre atos vinculados, discricionários e teoria dos motivos determinantes”.

O BPX afirma que já pagou, via Guia de Recolhimento da União (GRU), os R$ 30 milhões de outorga.

Procurada, a Seção Judiciária do DF informou que a distribuição de processos entre juízes segue regras previstas no regimento interno e leva em conta até fórmula matemática para equilibrar acervos entre juízes.

Das sete empresas que tiveram autorização judicial para explorar 18 sites, até a última sexta-feira, 9, cinco delas, com um total de 13 sites, foram liberadas por decisões da 4ª Vara.

Apesar da concentração, a SJDF afirmou que “não temos conhecimento dos possíveis processos distribuídos para a 4ª Vara Federal no assunto elencado, nem elementos para afirmar que estaria recebendo a maioria destes casos”.

Juiz do caso das bets barrou posse de Lula e foi a ‘Fora, Dilma’

O juiz Itagiba Catta Preta Neto, de 64 anos, da 4ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal, foi envolvido em algumas polêmicas nos últimos anos.

Em 2016, ele barrou a posse do então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como chefe da Casa Civil pela então presidente Dilma Roussef (PT), minutos após cerimônia no Palácio do Planalto.

A nomeação era uma forma de tentar impedir a prisão do petista na Operação Lava Jato. Publicações de Catta Preta mostraram que usava as redes sociais para criticar os petistas e exaltar o então colega de magistratura Sergio Moro.

Catta Preta até participou de protestos que pediam “Fora, Dilma”. Uma das publicações compartilhadas pelo magistrado no Facebook, antes de desativar o perfil pessoal, dizia: “Pare de chamar os outros de golpistas defendendo quem te rouba. Você parece um retardado”.

Em outubro do ano passado, o magistrado esteve em camarotes do estádio Mané Garrincha para assistir ao jogo do Brasil contra o Peru, ao lado de autoridades e empresários convidados pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

Vinícius Valfré/Estadão
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