29 julho 2025
Dezesseis anos após o vazamento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o governo federal alterou pela primeira vez os padrões de segurança para a gráfica que vai imprimir o maior vestibular do País. O número de vigilantes foi reduzido, não há mais a exigência de câmeras a cada 20 metros quadrados nem de contratação de uma empresa externa para monitorar os trabalhos de impressão.
Procurado, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão responsável pela prova no Ministério da Educação (MEC), nega que as alterações representem “flexibilização da segurança” e diz que são “uma evolução do modelo, com base em parâmetros técnicos atualizados”. O Inep disse ainda que seguiu orientações do Tribunal de Contas da União e da Controladoria-geral da União (mais informações abaixo).
As novas regras fazem parte do Termo de Referência do edital de contratação da gráfica que vai imprimir a prova em 2025. O Estadão ouviu quatro especialistas em segurança e dois ex-presidentes do órgão sobre a mudança. Todos demonstraram preocupação.
Até agora, as regras seguiam a mesma logística de sigilo e segurança estabelecida logo após a fraude, em 2009, apenas com alguns aprimoramentos. Naquele ano, os cadernos de questões foram roubados da gráfica Plural, onde eram impressos, em São Paulo. Um dos funcionários conseguiu guardá-los na cueca e saiu do prédio sem ser notado pela segurança – o caso foi denunciado pelo Estadão e o exame, cancelado a dias da aplicação.
O Enem é a principal porta de entrada para o ensino superior brasileiro. O desempenho do estudante na avaliação pode ser utilizado para ingresso em universidades públicas. Milhões de jovens do País farão o exame nos dias 9 e 16 de novembro.
Quais foram as mudanças este ano?
Até 2024, o Inep requisitava que a gráfica disponibilizasse “câmeras coloridas infra-red com no mínimo 420 linhas de resolução a cada 20 metros quadrados, em todas as áreas dedicadas a execução do objeto”. E “pelo menos uma câmera colorida infra-red com alta resolução Sistema IP – Full HD com resolução de 1600X1200 e 2 megapixels a cada 100 metros quadrados”. Este ano o termo fala que câmeras com as mesmas especificações devem estar “localizadas no parque fabril em locais estratégicos” com “alcance mínimo de 20 metros”.
Com relação aos vigilantes, o documento usado até o último ano falava que eles deveriam estar posicionados durante 24 horas ″a cada 100 metros quadrados na operação gráfica”. Essa especificação de localização não existe mais no novo termo – o documento pede agora que eles estejam posicionados “de forma que todas as áreas estejam vigiadas”.
Alan Fernandes, membro do conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, explica que a não determinação da localização dos seguranças pode deixar áreas descobertas. “Uma solução de baixo custo seria colocar vigilantes que percorram o parque gráfico e isso cumpriria o edital”, alerta.
Foi justamente numa dessas zonas “de sombra” da gráfica que o Enem foi roubado em 2009.
Para o especialista, o Inep perde parte do controle do esquema de segurança quando não indica de forma objetiva algumas exigências. E deixa decisões a cargo da empresa contratada, como a localização e quantidade de vigilantes.
“Quando o escopo é definido claramente, com metragem, sejam das câmeras ou dos seguranças, o processo fica muito mais vigiado. Caso contrário, vira uma questão de entendimento de cada um”, completa outro especialista, Fernando Marquezini, diretor em uma empresa multinacional de segurança, com mais de 20 anos de experiência no segmento.
Servidores do Inep que trabalham no processo e foram ouvidos pelo Estadão têm a mesma avaliação. Eles afirmam também que os anos de aprendizado sobre a logística de segurança do Enem mostraram que um ponto chave é a chamada redundância no esquema. Isso significa garantir sempre mais de um meio de aferir um processo crítico, com, por exemplo, vigilantes e câmeras nos mesmos locais.
Menor número de vigilantes
Outra questão que chama a atenção dos especialistas é a redução do número de seguranças nas normas de 2025. Enquanto havia a necessidade de ter três pessoas durante “24 horas em cada acesso”, agora são “2 (dois) postos de vigilância, 24 horas x 7 dias, em cada portaria”. Além disso, o número de supervisores de segurança cai de três para dois.
“Me preocupa o subdimensionamento de vigilantes e supervisores. As câmeras podem ser potentes o quanto forem, mas se não tiver o elemento humano observando isso, não adianta”, afirma Fernandes. “Com certeza o edital antigo é mais seguro, mas não consigo afirmar se é inseguro a ponto de comprometer o processo porque não conheço o espaço”, completa.
O novo documento deixa ainda de exigir que a gráfica contrate uma empresa externa para auditoria e monitoramento de todo o processo de segurança, que identificaria eventuais falhas ou aprimoramentos.
“É importante sempre ter vários níveis de segurança, alguém que vai analisando o que está sendo feito porque é natural passar algo desapercebido”, afirma o ex-presidente do Inep, Luiz Cláudio Costa, que esteve no órgão entre 2012 e 2014, quando boa parte do modelo de segurança foi consolidado.
Especialistas da área reforçam que a monitoria externa é um procedimento importante em esquemas de segurança de qualidade porque ajuda a impedir uma eventual conivência de funcionários em falhas. “Entre todos os pontos de risco do Enem, a gráfica sempre foi o mais alto”, completa Costa.
Maria Helena Guimarães de Castro, também ex-presidente do Inep durante o governo Fernando Henrique Cardoso e que voltou ao MEC durante a gestão de Michel Temer, diz que a redução de exigências pode ter a intenção de economizar recursos. “O Enem é um exame caro”, afirma. Quanto mais inscritos, mais custosa fica a impressão e mais complicada a logística.
Ela destaca que avaliações internacionais já são feitas de modo digital, o que, além poder baratear, também traz mais segurança. O Enem chegou a ter uma versão piloto digital em 2022, mas foi cancelada.
O que não mudou
O documento atual continua exigindo outros itens de segurança, como máquinas de raio X nas entradas, inspeção in loco dos funcionários do Inep, gravações das imagens geradas pelas câmeras e checagem contínua desse monitoramento digital.
Um aprimoramento deste ano foi a determinação de produzir amostragem de exames impressos. O termo de 2025 exige que a cada troca de chapa, a gráfica separe e guarde cinco unidades de cada tipo de prova, em condições de sigilo e segurança, para inspeção do Inep. Antes, esse processo não era detalhado no edital.
As amostras servem para evitar erros de impressão como os que ocorreram em 2010, quando a numeração do caderno de questões saiu descasada com a do gabarito. Na época, a diferença causou confusão entre os candidatos que faziam a prova.
Além da seleção para as universidades, o Enem é requisito obrigatório para acessar diversos programas do governo federal, como o Financiamento Estudantil (Fies) e o Programa Universidade para Todos (ProUni). As inscrições para o Enem, que iriam até o dia 6 de junho, foram prorrogadas pelo MEC até o dia 13, após uma procura aquém do esperado.
O que diz o Inep
Segundo nota do Inep enviada ao Estadão, as mudanças este ano atendem “à necessidade de assegurar ampla concorrência nos certames licitatórios” e seguem “orientações dos órgãos de controle, como o TCU e a CGU”. O instituto diz ainda que a nova norma é “compatível com os princípios da eficiência e da razoabilidade” previstos na Lei de Licitações.
Em 2020, TCU, provocado por contestações da Justiça da própria Plural, alertou o Inep de que poderia haver excesso de rigor nos editais do Enem, o que beneficiaria algumas empresas.
A reportagem procurou o TCU para sabe se houve novas recomendações, mas, segundo o órgão, os dois acórdãos são de 2020 e 2019. Um deles também recomenda que o Inep avalie a possibilidade de incorporar evoluções tecnológicas de digitalização e de automatização para aprimorar os editais e flexibilizar exigências, “especialmente aquelas relacionadas ao método de impressão”.
Até então, desde o roubo em 2009, apenas uma gráfica vencia as licitações, a RR Donnelley. Mas em 2019, ela declarou falência e, no ano seguinte, a Plural ganhou o pregão, com contrato renovado até 2024. Como prevê a legislação, depois de cinco anos, foi preciso fazer um novo pregão em 2025, e a gráfica ganhou novamente.
Sobre as câmeras, o governo afirma que a “flexibilização na redação não reduz a vigilância, mas permite que soluções tecnológicas modernas (como câmeras de maior alcance, sistemas inteligentes de detecção e monitoramento automatizado) sejam utilizadas de forma mais eficaz”.
Não há, no entanto, exigência de câmeras mais modernas na nova norma. A única diferença é com relação às imagens gravadas pelas câmeras. Em 2025, há a menção a “15 frames por segundo (FPS)”. Até então, falava-se apenas em 7,5 FPS. Segundo especialistas, isso permite uma melhor identificação de uma ocorrência gravada, mas não ajuda na prevenção.
O Inep afirma que a nova regra “mantém o número mínimo de postos estratégicos de vigilância (nas portarias, áreas de produção, central de monitoramento, supervisão e coordenação), assegurando cobertura ininterrupta por profissionais capacitados”.
Sobre a retirada de exigência de auditoria externa, o Inep afirma que “embora não esteja mais expressamente prevista como requisito obrigatório, pode ser exigida, a qualquer momento, pela Administração durante a execução contratual”.
O que diz a gráfica
Em nota ao Estadão, a gráfica Plural respondeu que “em que pese ter havido alterações na redação do edital do Enem 2025″, a empresa “não só manteve a estrutura do edital de 2020, como investiu mais de R$48 milhões em equipamentos e infraestrutura para atendimento do novo edital com o sigilo e segurança que requerem o processo produtivo”.
A Plural é certificada como gráfica de segurança, o que indica que segue exigências da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABTN) para impressões sigilosas.
O valor que será pago pelo Inep, segundo o pregão realizado em maio, é de R$ 119.199.999,46. As impressões devem começar em agosto, com previsão inicial de 4 milhões de cópias.
Apesar do valor do serviço da gráfica estabelecido pelo pregão ser 13,4% maior este ano do que em 2024 (valores corrigidos pelo IPCA), as mudanças podem baratear as despesas da empresa, que contrata seguranças terceirizados, por exemplo.
Paula Ferreira e Renata Cafardo/Estadão Conteúdo