23 novembro 2024
Um dia após a polêmica visita do chanceler Serguei Lavrov a Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o Kremlin disse que a proposta do presidente brasileiro de criar um clube de mediação neutro para a Guerra da Ucrânia merece atenção porque leva em conta os interesses russos.
Questionado sobre a ideia de Lula, o porta-voz Dmitri Peskov afirmou: “Qualquer ideia que leve em conta os interesses da Rússia merece atenção e certamente precisa ser ouvida”. Em fevereiro, o vice-chanceler Mikhail Galuzin já havia dito que o plano estava sob análise.
A visita de Lavrov, que acaba nesta terça (18), foi marcada por críticas do governo americano. O porta-voz do Conselho de Segurança Nacional americano, Jack Kirby, disse a posição de Lula na guerra é “profundamente problemática” e que o presidente estava repetindo a propaganda russa.
O Itamaraty rebateu a afirmação, com o chanceler Mauro Vieira dizendo que o Brasil só quer promover a paz. Apesar do alinhamento a Moscou, o país condenou em duas ocasiões a invasão em votações na ONU.
O petista tem um histórico de declarações controversas sobre o conflito. No ano passado, disse que o presidente Volodimir Zelenski era tão culpado quanto Vladimir Putin pela guerra, por não considerar as necessidades de segurança de Moscou. Repetiu o raciocínio este ano, sendo duramente criticado em Kiev.
Lula também sugeriu que a Ucrânia deveria começar negociações de paz assumindo a perda da Crimeia, anexada em 2014 por Putin, levando a nova rodada de críticas. Por fim, enviou o assessor Celso Amorim para uma conversa com o presidente russo antes da viagem de Lavrov, recebido no dia em que voltou de uma viagem à China.
Em Pequim e na parada feita nos Emirados Árabes Unidos na volta, Lula recheou seus discursos com ataques aos EUA, da defesa do abandono do dólar como moeda de troca internacional à responsabilização de Washington pela continuidade da guerra.
Os EUA são os principais doadores de ajuda militar aos ucranianos, razão central para a resistência de Kiev à máquina militar de Putin.
As falas azedaram uma relação que havia começado promissora, ainda que com limites, entre Lula e o americano Joe Biden. Diplomatas dos EUA consideram que o petista está sendo ingrato, dado o apoio dado por Washington ao sistema eleitoral brasileiro no momento em que ele estava sendo questionado pelo discurso golpista de Jair Bolsonaro (PL).
Caiu especialmente mal uma entrevista de Lula na qual o petista disse que a Operação Lava Jato foi feita em conluio com os EUA visando destruir o potencial das empreiteiras brasileiras no exterior.
Em relação à Ucrânia, a proposta de Lula é vaga. Sugere a criação de um clube da paz, nas suas palavras, de países sem envolvimento direto no conflito para discutir formas de encerrar a crise iniciada há quase 14 meses.
A questão é que o petista insinuou que países como Brasil e Índia, nominalmente neutros, pudessem sentar-se à mesa com a China —que, por ser principal aliada de Putin, não é vista como imparcial pelo Ocidente, que por sua vez tem seu lado na guerra.
Várias potências tentam romper o impasse. A Turquia, que tem boas relações com Moscou e Kiev, além de ser integrante da Otan [aliança militar ocidental], saiu na frente, mas sem sucesso. A China apresentou um plano de paz que abarca contradições, e nesta terça a agência Bloomberg publicou que a França quer trabalhar com Pequim uma saída.
O presidente francês, Emmanuel Macron, tratou segundo a reportagem o tema em sua visita a Xi Jinping, há duas semanas. Peskov, questionado por jornalistas, disse desconhecer tal negociação.
A posição de Lula é vista por observadores como frágil devido ao baixo peso relativo do Brasil em questões de segurança internacional, e críticos apontam que ele pode estar sendo usado pela Rússia para Moscou ganhar tempo.
Fato é que, a esta altura, nem Rússia, nem Ucrânia estão prontas para a paz. Moscou diz que qualquer conversa tem de começar com a aceitação do que chama de novas realidades, ou seja, o reconhecimento não só da anexação da Crimeia, um fato consumado, mas também dos quatro territórios ucranianos declarados absorvidos em setembro passado.
Na visão de Putin, os interesses russos citados por Peskov incluem formas de manter a Ucrânia distante de uma admissão à Otan, garantindo um espaço tampão entre o país e o Ocidente. Até aqui, conseguiu o contrário, com a adesão da Finlândia e sua fronteira de 1.300 km com a Rússia ao clube militar.
Já para Kiev, os combates só acabam quando todas as forças russas deixarem as áreas ocupadas, que somam cerca de 20% do país. Após um inverno do Hemisfério Norte de intensos combates no leste, em torno da cidade de Bakhmut (Donetsk), que seguem, ambos os lados se preparam para o endurecimento do solo para ofensivas de primavera.
Igor Gielow/Folhapress