24 novembro 2024
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) retomou o interesse brasileiro no setor de energia nuclear da Rússia, abrindo assim uma nova possibilidade de atrito futuro com países ricos liderados pelos Estados Unidos, já que o G7 acaba de divulgar um plano para tentar quebrar o domínio de Moscou neste mercado.
O tema foi conversado durante a visita do chanceler russo, Serguei Lavrov, a Brasília, onde ele foi recebido na segunda (17) por Lula e pelo chanceler Mauro Vieira, o que foi objeto de duras críticas dos EUA e da Ucrânia, país invadido pela Rússia.
Não foi o centro das conversas, que giraram mais em torno da guerra, na qual o Brasil quer ser mediador, de oportunidades comerciais e da retomada de diálogo bilateral.
Mas o fato de estar na pauta mostra que Lula deu sequência a um movimento aberto por Jair Bolsonaro (PL) em sua controversa visita a Valdimir Putin em fevereiro de 2022, uma semana antes da invasão russa de seu vizinho.
Como a Folha revelou há pouco mais de um ano, um dos temas prioritários para o presidente brasileiro era a questão do combustível para ser utilizado no reator do futuro submarino de propulsão nuclear do país. Apesar de dominar o ciclo do produto, o Brasil não o produz com a certificação necessária —e os EUA fecharam a porta sobre o tema.
O protótipo do reator da embarcação em desenvolvimento pela Marinha, que deve ir ao mar só na próxima década, está em testes desde 2021, mas falta acesso a combustível. O processo precisa do crivo da Agência Internacional de Energia Atômica, e a guerra parecia ter enterrado as conversas.
Não foi o que ocorreu, ainda que superficialmente —tratativas mais detalhadas disso na Marinha e no Itamaraty são segredos de Estado. Além do submarino, há a questão da retomada das obras de Angra 3, paralisadas desde 2015 devido à eclosão de denúncias de corrupção na Eletronuclear, a estatal que cuida do setor.
No ano passado, Bolsonaro estendeu o prazo para reavaliações técnicas do projeto, que retomou algumas obras civis no fim do ano passado. A usina, irmã maior de Angra 1 e 2, começou a ser construída nos anos 1980, em ação interrompida e depois reiniciada por Lula em 2009.
Também na visita de Bolsonaro o tema foi tocado, e Lula quer manter o contato com a Rosatom, a estatal atômica russa que é o maior ator no mercado no mundo que já se colocou na disputa por Angra 3 contra a Westinghouse (EUA), a CNNC (China) e a EDF (França).
Além de operar 11 unidades na Rússia e a maior usina da Europa na Ucrânia ocupada, em Zaporíjia, a Rosatom está construindo 35 dos 58 novos reatores no mundo hoje. Cerca de um quinto dos 435 reatores ativos no planeta são seus ou com desenho seu, e a empresa de quase 270 mil empregados controla 14% do mercado de combustível, 28% do de enriquecimento e 75% do de tecnologias associadas.
A Turquia, um país da Otan (aliança militar ocidental), convidou Putin para inaugurar a sua primeira usina nuclear, construída pela Rosatom, na semana que vem. A Hungria, também membro da Otan, tem uma central contratada e mesmo os Estados Unidos dependem da empresa: 16% do combustível nuclear que consomem vêm dela.
Não sem surpresa, energia nuclear nunca entrou no radar das sanções que fecharam o mercado de gás natural e de petróleo para a Rússia na Europa. Com efeito, a Rosatom aumentou seu faturamento em 15% em 2022. Isso até agora.
Nesta semana, em reunião do G7 (clube de economias desenvolvidas) na cidade japonesa de Sapporo, EUA, Reino Unido, França, Canadá e Japão decidiram implementar um acordo para tentar romper o domínio russo do mercado —no mundo todo, centrais nucleares respondem por 10% da produção energética.
“Temos de derrotar Putin e garantir que nem ele, nem ninguém como ele, possam pensar em tornar o mundo refém por meio de sua energia novamente”, afirmou o secretário do setor britânico, Grant Shapps. O acordo prevê “garantir o suprimento de urânio combustível por meio de cadeias produtivas compartilhadas para isolar a Rússia”.
A questão nuclear é bem mais complexa de lidar do que óleo e gás, como a demora para o Ocidente atacar esse flanco mostra. Mas, assim como Moscou abriu novos mercados para seu petróleo, como o aumento em 14 vezes da venda para a Índia em 2022, parece lógico que queira incrementar parcerias em países como o Brasil antes que o plano dos países ricos surta efeito.
Nas reuniões em Brasília, outro tema energético foi o diesel, produto que o Brasil importa para sua extensa rede de transporte rodoviário. Desde que Lula assumiu, houve um pico de compra do combustível da Rússia.
Segundo a consultoria Argus, em 2002 Moscou tinha apenas 1% do mercado brasileiro de diesel, dominado pelos EUA, com 57,2%. No primeiro trimestre deste ano, contudo, os russos subiram para 13,2% e os americanos, caíram para 33,1% das importações.
A área de fertilizantes, claro, segue prioritária, dado que a Rússia domina mais de 20% do mercado nacional. Duas empresas, a russa Uralkali e a suíça EuroChem, que opera minas na Rússia, querem investir no porto de Antonina (PR) como “hub” para seus produtos. No campo dos negócios, a Rússia segue ampliando a habilitação de frigoríficos brasileiros e agora estão sendo estudados acordos no campo de pescados.
A visita foi controversa, com críticas dos EUA e do presidente Volodimir Zelenski ao que seria leniência com a agressão russa, além da equiparação de culpas na guerra feita pelo brasileiro. O petista modulou o tom no dia seguinte, voltando a condenar a invasão em si, mas pregando negociação.
O espinhoso tema dos alegados espiões russos fingindo serem brasileiros não foi, segundo pessoas com conhecimento das conversas de ambos os lados, falado com Lavrov. O assunto seria, segundo elas, tema de conversas diretas entre órgãos policiais de ambos os países, com assistência diplomática.
Igor Gielow/Folhapress