30 outubro 2024
Mal as economias globais se recuperaram do impacto negativo da Covid, eventos adversos em importantes rotas marítimas voltam a ameaçar o comércio internacional —e podem deixar impactos no Brasil.
Uma seca histórica baixou o nível da água no canal do Panamá, o que diminui o fluxo de navios que cruzam o país da América Central, por onde passam cerca de 6% do comércio global.
Do outro lado do planeta, ataques de rebeldes houthis, no mar Vermelho, afetam toda a rota que passa pelo canal de Suez, no Egito, com cerca de 12% do comércio mundial.
O impacto mais imediato do que tem sido descrito como a maior crise no transporte marítimo desde a Covid é no aumento do tempo e custo dos transportes, o que afeta o preço de exportações e importações brasileiras, segundo analistas e operadores de logística ouvidos pela reportagem.
Rotas que adentram o mar Vermelho pelo canal de Suez, por exemplo, entre Ásia e Europa, são desviadas para o Cabo da Boa Esperança, no sul da África, para evitar ataques a embarcações.
Já no Panamá, que restringiu para 24 o número de navios que podem passar diariamente por causa do baixo nível da água, as operadoras de logística buscam alternativas em outros meios de transporte.
A DHL Global Forwarding, por exemplo, oferece um híbrido entre transporte marítimo e aéreo para rotas do Brasil que vão à costa oeste dos Estados Unidos. Em vez de cruzar o Panamá, a carga é enviada a Miami, no sudeste do país, e, de lá, vai, via transporte aéreo, para a costa oeste, diz a companhia.
A dinamarquesa Maersk, uma das maiores empresas de transporte do mundo, anunciou que vai usar ferrovias para cruzar o Panamá enquanto houver restrições no canal.
Mesmo rotas que não são prioritárias para o Brasil acabam prejudicando algumas indústrias.
No caso do mar Vermelho, um dos setores mais impactados deve ser o de exportação de proteína animal, porque o Oriente Médio consome 29,4% da produção brasileira com destino ao exterior, segundo a ABPA (Associação Brasileira de Proteína Animal).
Só em 2023, o Brasil enviou 1,5 milhão de toneladas para a região, que geraram receita de US$ 3,1 bilhões.
“Já tem ocasionado algum incremento de custos, a gente tem de trocar os portos para onde estão indo os materiais. Eleva o custo para as empresas e eleva o custo do produto também. Há também uma pressão na demora da entrega, porque o cliente que comprou precisa do produto”, diz o presidente da ABPA, Ricardo Santin.
Ele recorda, no entanto, “que é um processo que a gente já viveu no passado”, não só com a interrupção das cadeias globais com a Covid, mas também com o bloqueio do canal de Suez com o encalhe do navio Ever Given, que travou toda a região em 2021.
Quando se olha a média de preço do frete dos contêineres, os valores estão até mais baixos do que no ano passado, porque os contratos são anuais e foram fechados antes da crise, afirma Leandro Barreto, sócio-gestor da Solve Shipping, consultoria em logística e comércio exterior que monitora esses custos.
As empresas de transporte, no entanto, impõem em tempos de turbulência sobretaxas, que muitas vezes fazem dobrar o custo original do frete. São essas tarifas adicionais que têm feito o custo do transporte crescer.
Por exemplo, desde 1º de janeiro a MSC tem cobrado uma taxa extra de US$ 450 por contêiner em todos os embarques da costa leste da América do Sul para Oriente Médio, o chamado Ipak (Índia, Paquistão, Sri Lanka e Bangladesh), mar Vermelho e África Ocidental.
“Em vista dos recentes acontecimentos no mar Vermelho, a MSC tomou a decisão de desviar seus navios pelo cabo da Boa Esperança para manter a segurança da tripulação, da carga e do navio. Este desvio significará um aumento de trânsito e nos custos, dependendo do destino e/ou do ponto de transbordo envolvido”, diz o comunicado.
Já a Cosco Shipping também anunciou sobretaxas que vão de US$ 500 a US$ 1.500 de embarques do Brasil para os Emirados Árabes Unidos, Omã, Kuwait, Qatar, Arábia Saudita, Índia, Paquistão, Bangladesh e Sri Lanka.
Essas sobretaxas podem fazer até dobrar o custo do transporte, uma vez que em alguns casos estão maiores do que a média do frete, conforme levantamento da Solve Shipping.
Para contêineres de 40 pés com cargas secas (como grãos), em janeiro deste ano cobra-se em média US$ 400, contra US$ 950 um ano antes. Para cargas refrigeradas (como frutas e carnes), o valor é de US$ 3.800 neste ano, contra US$ 4.900 no ano passado.
Barreto afirma que havia a expectativa de uma superoferta de transporte marítimo em 2024, o que tenderia a baixar os preços do frete.
Mas os navios podem levar até 15 dias a mais para cumprir as rotas com os desvios necessários. Assim, passam mais tempo ocupados e por isso há menos embarcações e contêineres disponíveis.
“Isso consome todos os navios supostamente adicionais que sobrariam em 2024, o que frustra qualquer expectativa de queda mais acentuada nos preços”, diz Barreto.
O levantamento da empresa aponta ainda um aumento no preço médio de importação de contêineres da Ásia com carga seca: hoje em US$ 2.900, um ano atrás em US$ 1.000.
Isso afeta importações de maquinários, fertilizantes, embalagens e outros tipos de insumos, o que impact a indústrias como a de produção de frutas, diz Zakaria Benzaama, diretor de logística da Abrafrutas (associação do setor).
Sob efeito dos conflitos no mar Vermelho e de outras variáveis, como o Ano-Novo chinês, o preço do frete de importação cresceu 121% de novembro a janeiro, segundo Benzaama. Ele diz haver menos carga no mar.
Já no setor brasileiro de petróleo, o impacto ainda não foi sentido, de acordo com Deyvid Bacelar, coordenador-geral da FUP (Federação Única dos Petroleiros).
Ele afirma que o aumento no preço do frete está mais ligado à demanda de fim de ano e ao Ano-Novo chinês —período em que, normalmente, esse indicador sofre crescimento.
“Mas é possível haver um impacto maior no tempo de entrega de mercadoria. Haverá um aumento da demanda, pois terão menos navios circulando, já que vão levar mais tempo para chegar. Portanto, é possível que haja uma tendência de aumento de período de tempo e um custo um pouco maior do frete”, afirma Bacelar.
No mundo, no entanto, os conflitos na região do Mar Vermelho pressionaram o preço do petróleo nas últimas semanas.
Fernanda Brandão Martins, coordenadora do curso de Relações Internacionais da Mackenzie Rio, afirma que a exportação de petróleo e gás provenientes de reservas de xisto nos Estados Unidos conseguem equilibrar um pouco a oferta da commodity, mas o medo de uma futura escassez é uma ameaça aos preços, diz.
Para Fabio Pina, economista da FecomercioSP, ainda que o Brasil não sofra impacto direto dos conflitos, países produtores de mercadorias importadas pelo Brasil podem ser afetados —ou seja, a indústria brasileira viveria as consequências de uma alteração na cadeia de produção global.
“É uma região na qual tem que prestar atenção. Boa parte das mercadorias passam por lá. Imaginar que esse evento não vai ter efeito sobre o Brasil é inocência”, diz Pina.
Se os entraves permanecerem, no entanto, podem acabar se tornando uma oportunidade para o Brasil, na avaliação de Arno Gleisner, diretor da Cisbra (Câmara de Comércio, Indústria e Serviços do Brasil).
“Se isso continuar em um prazo médio ou longo, o Brasil talvez seja uma fonte alternativa de produtos para a costa leste americana e para a África, como um fornecedor de produtos que hoje vêm da Ásia para essas duas regiões”, afirma.
Eric Brenner, CEO da DHL Global Forwarding, concorda.
“O Brasil está numa posição geográfica privilegiada atendendo de maneira direta para a América Latina, a Costa Leste dos Estados Unidos, Norte da Europa e a Ásia [via cabo da Boa Esperança]. Mesmo que as exportações do Brasil se baseiem em matérias primas e bens primários, o país vem recebendo ao longo dos anos mais investimentos estrangeiros, podendo crescer no setor de manufaturados e torna-se mais atrativo nas rotas comerciais globais”.
Thiago Amâncio/Paulo Ricardo Martins/Folhapress