23 novembro 2024
Economista do Ministério da Economia. Mestre em Economia e Doutor em Administração Pública pela UFBA. Autor de diversos trabalhos acadêmicos e científicos, dentre eles o livro Política, Economia e Questões Raciais publicado - A Conjuntura e os Pontos Fora da Curva, 2014 a 2016 (2017) e Dialogando com Celso Furtado - Ensaios Sobre a Questão da Mão de Obra, O Subdesenvolvimento e as Desigualdades Raciais na Formação Econômica do Brasil (2019). Foi Secretário Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) e Diretor-presidente da Companhia de Processamento de Dados do Estado da Bahia (Prodeb), Subsecretário Municipal da Secretaria da Reparação de Salvador (Semur), Pesquisador Visitante do Departamento de Planejamento Urbano da Luskin Escola de Negócios Públicos da Universidade da Califó ;rnia em Los Angeles (UCLA), Professor Visitante do Mestrado em Políticas Públicas, Gestão do Conhecimento e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Professor, Coordenador do Curso de Ciências Econômicas e de Pesquisa e Pós-Graduação do Instituto de Educação Superior Unyahna de Salvador.
A eleição de Eliete Paraguassu (PSOL), Hamilton Assis (PSOL) e as reeleições de Marta Rodrigues (PT) e Silvio Humberto (PSB) para a Câmara de Vereadores de Salvador (CMS) nesse pleito de 2024, marca um momento muito singular na política soteropolitana no que diz respeito ao recorrente debate sobre as desigualdades raciais e a baixa representatividade político-institucional de negros e negras “afro centrados” em Salvador e na Bahia.
Cada um/a dessas atrizes/atores políticos, como também outras pessoas que já passaram pela CMS, tem tido em suas respectivas histórias de luta pela equidade racial um legado que nos permite trazê-los para esse debate como ponto de partida para nossa reflexão. No entanto, a grande particularidade que vemos nesse momento foi a conjunção de um caráter coletivo e suprapartidário que contextualizou esse alvissareiro resultado numa eleição que foi, de longe, a mais difícil para o campo das oposições ao grupo liderado por ACM Neto desde 2012.
Neste sentido, não é razoável desassociar a performance eleitoral desses/as parlamentares – no que pese as particularidades partidárias situacionais de cada um/a – a também extremamente relevante votação para prefeito de Kleber Rosa (PSOL) que, ao mesmo tempo conseguiu superar de forma maiúscula o percentual histórico de votos dos candidatos a prefeito anteriores de seu próprio partido, mas, principalmente, ter superado o representante da base do governo estadual que desde 2008, disputa a cidade de Salvador sempre como a segunda força política.
No que pese todas as corretas avalições sobre os crassos erros políticos em escala astronômica que desaguou na escolha e na campanha do candidato apoiado pela aliança em torno do PT, o nosso entendimento sobre isso resguarda algumas outras perspectivas que nos permitem afirmar que a debacle da candidatura de Geraldo Júnior (PMDB) não pode ser atribuída tão somente a sua escolha enquanto candidato e, muito menos, ao seu desempenho na campanha isoladamente, narrativa que agora, aparece no discurso de parte significativa de seus próprios apoiadores e, até, de alguns dos responsáveis pela sua indicação.
A meu ver, o que aconteceu em Salvador é uma incontroversa consequência de que o modelo de eleições “de postes” ou escolhas de cima para baixo, particularmente em partidos que se entendem como esquerda está esgotado. Isto é, aquilo que foi muito comum durante o coronelismo raiz de outrora e cuja prática tem sido mimetizada pela deformada noção de “hegemonia de balaio de gatos” que tem se conformando a chamada base aliada ampliada (sic) que tem sustentado as vitórias eleitorais ao governo da Bahia desde 2014, mas que, contraditoriamente e profundamente, vem acumulando derrotas cada vez mais acachapantes nos municípios mais importantes do Estado desde 2008, está com os dias contados.
É por isso que as humilhantes derrotas em Feira de Santana, Vitória da Conquista e Lauro de Freitas já em primeiro turno, além do difícil e acirrado coin flip em Camaçari cujo desfecho se dará em segundo turno, não podem ser vistas como simples movimentos da conjuntura eleitoral. Muito pelo contrário, representa sim uma demonstração inequívoca de que o sistema entrou em entropia e o colapso pode estar próximo. Logo, mudanças profundas e imediatas precisam acontecer não apenas na forma, mas, fundamentalmente, no conteúdo dos processos de escolhas eleitorais e políticas do campo das esquerdas que por ora ainda estão à frente da burocracia em nível estadual.
Nesta mesma senda, cada dia se torna ainda mais imperativo que haja uma avaliação qualitativa de folego sobre toda a modelagem da governança política que tem sido implementada pelo governo que vem dirigindo os destinos dos baianos por mais de 18 anos ininterruptos, uma vez que desempenhos eleitorais negativos de forma sistêmica como os observados neste ano, são importantes marcadores de insatisfações acumuladas e espalhadas por várias camadas sociais e distintos grupos sociais. No campo racial, por exemplo, isso é indiscutível.
Do lugar de onde observo, portanto, é preciso fazer um batimento responsável entre narrativas, práticas e resultados de forma muito objetiva para se verificar, de fato, qual o verdadeiro nível de transformação na qualidade de vida e em avanços políticos-institucionais alcançados, em especial aqueles relativos à equidade racial e a garantia de direitos.
Nesse aspecto, a questão fundamental que precisa ser respondida por quem de direito é porque mesmo entendendo-se todas as contradições inerentes ao jogo político-institucional-eleitoral desses quase vinte anos de poder exercido pelo campo progressista que derrotou o carlismo em 2006, a síntese desse longo período de gestão do establishment não é a de agregação de valor, mas sim, de um paulatino esvaziamento institucional das bandeiras tradicionais das esquerdas brasileiras e baianas em que o PT, que lidera o governo do Estado, tem desenvolvido desenhos e discursos programáticos de relevância sem, contudo, garantir avanços concretos sustentáveis em prol da maioria do povo baiano, particularmente da sua grande maioria negra?
Esse é a trama mais importante que faz do resultado das eleições 2024 em Salvador ainda mais emblemático e relevante para atenção das lideranças negras baianas e soteropolitanas, onde ainda destacamos: 1) a performance eleitoral de Kleber Rosa, inclusive com apoio da “desobediência civil’ de importantes militantes dos partidos de esquerda da base do governo estadual; 2) a manutenção dos mandatos de Marta Rodrigues e Silvio Humberto, a despeito do fracasso eleitoral da chapa majoritária que eles fizeram parte e 3) a chegada de Eliete Paraguassu e Hamilton Assis a CMS, cujas campanhas não foram feitas com o apoio de estruturas governamentais e empresariais, mas, fundamentalmente sustentadas por aquilo que podemos chamar de militantes do Campo Étnico Popular, latu senso.
Ou seja, mesmo tendo em vista a tentativa de alguns de credenciar a eleição de Marta Rodrigues como obra única e exclusiva da sua relação consanguínea com o governador do Estado – fantasia que não resiste a uma análise política minimamente responsável – o fato concreto é que o conjunto dessas sincronicidades eleitorais não é algo a ser desconsiderado do ponto de vista político, no geral, e muito menos no que diz respeito aos debates acerca da importância da representatividade racial nas disputas políticas e na gestão pública em Salvador e na Bahia.
Por oportuno, deve-se salientar também que todo esse movimento tem sido catalisado de forma consistente nos últimos anos a partir dos debates e intervenções suprapartidárias e multi-grupais da Bancada do Feijão, especialmente a partir da Campanha EU QUERO ELA que foi um divisor de águas importante nas campanhas eleitorais em Salvador a partir de 2020. Assim, o que podemos estar observando, de forma mais pragmática a partir da performance eleitoral de representantes orgânicos do movimento negro da Bahia é um importante processo de renovação política na cidade – e quiçá no Estado – à esquerda, racialmente autocentrada e que ainda resguarda uma distância “higiênica” de estruturas e compromissos de uma burocracia pública não necessariamente comprometidas com as transformações profundas que a nossa sociedade precisa.
Mais do que isso, esses novos agrupamentos que adentram formalmente no parlamento local, ao redor de um partido como o PSOL, podem representar também uma importante e necessária agregação de valor tático e estratégico ao movimento mais compreensivo do que temos chamado de Campo Étnico Popular de Salvador que nos últimos 20 anos apresentaram lideranças negras exitosas do ponto de vista eleitoral e de criação de políticas de promoção da equidade racial, cujos exemplos mais proeminentes podem ser ilustrado pelos mandatos estaduais e federais obtidos pelos grupos políticos liderado Deputado Luiz Alberto (PT), morto no ano passado, Valmir Assunção (PT), bem como o de Olivia Santana ora Deputada Estadual pelo PC do B.
O resumo de tudo isso, do meu ponto de vista, é que a organização política-institucional negra suprapartidária e inter-multi-grupal não só é possível, como cada vez se demonstra mais necessária por trazer mais rapidamente resultados concretos para a nossa agenda mais ampla pela equidade racial e por políticas púbicas que promovam o desenvolvimento socioeconômico e a melhoria da qualidade de vida da maioria do povo baiano e soteropolitano.
A hora do aquilombamento é essa e nosso tempo é agora, já nos ensinava Mãe Stella de Oxóssi.