2 dezembro 2024
A poucos dias de começar a valer a lei que determina desconto nas contas de água e esgoto para famílias de baixa renda, empresas de saneamento, governos e agências reguladoras vivem um imbróglio. A medida entra em vigor em 11 de dezembro, mas diversos operadores dizem que até agora não receberam os dados do CadÚnico de que precisam para aplicar o benefício.
A lei define que pessoas com renda per capita mensal de até meio salário mínimo (R$ 706 hoje) devem receber desconto de 50% nos primeiros 15 metros cúbicos consumidos. Para isso, elas precisam estar no Cadastro Único —sistema vinculado a programas sociais— ou receber BPC (Benefício de Prestação Continuada).
A ideia é que as empresas de saneamento analisem ativamente quais clientes se enquadram nesse perfil para executar os reajustes tarifários junto às agências reguladoras locais.
O problema, segundo grupos que atuam no setor, é que os dados solicitados ainda não foram entregues, gerando insegurança de que eventuais atrasos na aplicação da lei entre na mira do Ministério Público, tribunais de contas e órgãos de fiscalização.
Christianne Dias, diretora executiva da Abcon (Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto), afirma que todas as empresas privadas do Brasil estão tendo dificuldades em acessar as informações do CadÚnico.
A base de dados está sob responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, mas sua operação é descentralizada, podendo ser acessada via estados e municípios.
“O setor está preocupado, porque o prazo está muito em cima e a disponibilização de dados ainda está bastante comprometida”, diz.
Segundo Christianne, o desconto previsto na lei deve aumentar a conta dos consumidores comuns em cerca de 15%. Isso porque a lei determina que a aplicação da tarifa social ocorrerá após o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos. Ou seja, primeiro a empresa de saneamento faz o reajuste para os clientes comuns, depois ocorre a aplicação do desconto para quem tem direito.
No entanto, o processo sequer começou em várias companhias. O problema não fica restrito a grupos privados. Neuri Freitas, presidente da Aesbe (Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento) também relata dificuldades vividas por grupos estaduais.
Segundo ele, o acesso aos dados acaba variando de cada companhia. A Cagece (Companhia de Água e Esgoto do Ceará), por exemplo, empresa da qual é presidente, já conseguiu os dados com a secretaria estadual.
A estimativa da Aesbe é que a aplicação da lei da tarifa social no saneamento gere uma perda de receita em torno de R$ 1,4 bilhão e enseje um reajuste médio das tarifas na casa dos 10%, o que depende das particularidades de cada região.
No Rio Grande do Norte, por exemplo, o reajuste para consumidores comuns deve ficar em 17%, enquanto no Distrito Federal a estimativa é de 1,5%.
“Isso é uma análise preliminar, porque não temos o CPF de todo mundo. Hoje, podemos ter um cliente que não está no CadÚnico, mas que pode ter alguém do grupo familiar que está, e isso pode mudar o cenário”, explica.
Nos bastidores, pessoas do setor contam que a lei da tarifa social é um tema politicamente difícil de se posicionar contra (tanto para empresas quanto para os políticos). Nesse contexto, a medida teria avançado sem muita organização.
O texto da lei prevê, por exemplo, a criação de um fundo federal para apoiar as empresas a bancarem o desconto. O fundo, porém, não foi criado e não há perspectiva de que seja alimentado com recursos públicos, principalmente num momento em que o governo é pressionado a cortar despesas.
O sentimento é de que o fundo não vai existir tão cedo e que as empresas serão obrigadas a aplicar a tarifa social jogando a conta para os outros consumidores.
Segundo uma pessoa familiarizada com o assunto, a mesa de negociação com o governo ainda está aberta, inclusive com a possibilidade de adiar o início da lei —embora não seja fácil.
O setor de saneamento também esperava um decreto que regulamentasse a lei, o que não aconteceu. Segundo Neuri, existe hoje uma preocupação geral de todas as companhias, públicas e privadas, porque essa também não houve nenhuma diretriz da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico).
Em nota, a ANA disse estar ciente das dificuldades relatadas pelos operadores em acessar os dados do CadÚnico e que vem reunindo informações para facilitar o processo operacional junto às agências reguladoras locais.
A ANA ainda destacou que, diferentemente dos outros setores de infraestrutura, a regulação dos prestadores de saneamento básico não é feita por uma agência nacional, mas por órgãos locais.
“Assim, diferente da Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE), em que a Aneel coordena o uso e acesso dos dados do Cadastro Único pelas distribuidoras de energia elétrica, a Tarifa Social de Água e Esgoto não possui um órgão ou entidade federal que exerça essa atribuição”, diz.
Também em nota, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social disse ter feito reunião com os governos estaduais e as entidades reguladoras de serviços de saneamento, enviando orientações sobre como repassar as bases de dados.
A dificuldade em acessar os dados pode estar ligada à sensibilidade das informações. Segundo a ANA, a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) e as normas do CadÚnico estabelecem que as secretarias dos estados ou municípios não devem disponibilizar dados pessoais diretamente a empresas privadas ou públicas de direito privado. Por isso, as entidades reguladoras se responsabilizam pela cessão.
Uma pessoa familiarizada com o setor lembra que o CadÚnico foi muito cobiçado por companhias que queriam vender serviços a pessoas de baixa renda, o que exigiu a criação de proteções adicionais.
Pela ferramenta de consulta do CadÚnico, existiam, em agosto de deste ano, 51 milhões de pessoas que se enquadram no perfil de renda da lei (até meio salário mínimo) e que estão conectadas a alguma rede de distribuição de água —ou seja, são possíveis clientes de uma operadora de saneamento.
Além disso, o BPC possui 3,5 milhões de pessoas com deficiência e 2,7 milhões de idosos. Ou seja, há cerca de 57 milhões de pessoas no Brasil que podem receber o desconto.
Para Marcos Montenegro, coordenador de comunicação do Ondas (Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento), é estranho que, às vésperas da lei entrar em vigor, as companhias comecem a ver problemas. “A lei deu um prazo de seis meses para que as empresas e as agências reguladoras se adaptassem”, afirma.
Marcos também discorda de que a lei vai trazer problemas financeiros para os contratos. “O principal problema de equilíbrio econômico-financeiro é de uma família que vive com até meio salário mínimo por mês. Isso sim”.
Francisco Lopes, secretário executivo da Assemae (Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento), menciona exemplos de companhias cujo impacto da tarifa social será baixo. Segundo ele, Jundiaí (SP) já implementou a tarifa social, o que representa um aumento de 0,6% para os consumidores comuns, segundo os cálculos.
No entanto, ele reconhece que a realidade do município paulista é diferenciada, já que a proporção de pessoas no CadÚnico é baixa, e destaca a importância da criação do fundo previsto na lei, principalmente em operações no Norte e Nordeste.
Thiago Bethônico/Folhapress