23 novembro 2024
Economista do Ministério da Economia. Mestre em Economia e Doutor em Administração Pública pela UFBA. Autor de diversos trabalhos acadêmicos e científicos, dentre eles o livro Política, Economia e Questões Raciais publicado - A Conjuntura e os Pontos Fora da Curva, 2014 a 2016 (2017) e Dialogando com Celso Furtado - Ensaios Sobre a Questão da Mão de Obra, O Subdesenvolvimento e as Desigualdades Raciais na Formação Econômica do Brasil (2019). Foi Secretário Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) e Diretor-presidente da Companhia de Processamento de Dados do Estado da Bahia (Prodeb), Subsecretário Municipal da Secretaria da Reparação de Salvador (Semur), Pesquisador Visitante do Departamento de Planejamento Urbano da Luskin Escola de Negócios Públicos da Universidade da Califó ;rnia em Los Angeles (UCLA), Professor Visitante do Mestrado em Políticas Públicas, Gestão do Conhecimento e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Professor, Coordenador do Curso de Ciências Econômicas e de Pesquisa e Pós-Graduação do Instituto de Educação Superior Unyahna de Salvador.
Nascido como bloco de carnaval em 01 de novembro de 1974, o Afro do Curuzu-Liberdade se transformou na principal referência para o povo negro brasileiro em termos de resistência e consciência negra de centralidade africana.
As noções de religiosidade, cultura, educação, estética, música e, acima de tudo, autoridade política e autoestima, foram reconstruídas a partir da trajetória do Ilê Aiyê. Na verdade, a nossa Pérola Negra sempre foi muito mais do que uma agremiação carnavalesca. Ele opera como uma espécie de campo de forças que influencia as mais diversas áreas da sociedade a partir de uma perspectiva política e racial, desde sua primeira subida do Curuzu em 1975.
O efeito de tudo que surge a partir da Senzala do Barro Preto e do Terreiro Jitolu, de onde emana a sua força espiritual, não possui limites no tempo e no espaço. Assim, o movimento iniciado e liderado pelo Ilê, seguido pelos demais Blocos Afros da Bahia, criou uma espécie de ethos afro-baiano que vem impregnando corações e mentes de conceitos e comportamentos pautados na luta contra o racismo e a desigualdade. Isso tem construído uma maneira de intervenção política, cultural, educacional e estética diferenciada e articulada com as mais diversas elaborações sociais que remontam a saberes ancestrais desde África pré-colonial, a partir dos ensinamentos do candomblé que estabelecem a ponte entre o ontem, hoje e o amanhã.
Os temas de carnaval do Ilê, por exemplo, não são um fim em si mesmo e, muito menos, representam apenas um mote para musicas e danças para o período carnavalesco. É isso que os diferencia, também, dos enredos das escolas de samba, posto que além de resultar de meses de amadurecimento de novos conceitos e práticas estéticas e musicais, desdobram-se para um olhar bem definido sobre as leituras e as releituras do Brasil e do mundo numa perspectiva pedagogicamente orientada para além do carnaval. São esses saberes e fazeres dos Negros e Negras “malassombrados”, “catigorias”, “criolos doidos bem legais”, que ensinam “malandragens”, mas, sobretudo, filosofias, que tem se consolidado um pensamento afro-baiano, sobre a força dos afro-brasileiros, suas origens culturais, étnicas e religiosas e, particularmente, a relação do negro e o poder: “se o poder é bom, eu quero. Ilê Aiyê tem poder!” Ecoa desde as vozes dos meninos da Banda Erê, até as majestosas interpretações da Banda Aiyê por onde quer que eles passem.
Os festivais para a escolha da musica tema, o dia da Beleza Negra e da escolha da Deusa do Ébano, a semana da Mãe Preta e as atividades pedagógicas e educacionais da Escola Mãe Hilda são alguns dos instrumentos de criação e disseminação de uma ideologia, de uma forma diferente de ver e fazer o mundo que tem moldado as atitudes e os comportamentos que conformam o legado civilizatório que o povo negro imprimiu na sociedade brasileira e o Ilê, consciente da sua tarefa em ser uma das suas principais caixas de ressonância e preservação, o faz com maestria.
Por isso que, muito diferente do que o Jornal A Tarde previa em sua edição de 12 de fevereiro de 1975, de que aqueles “mocinhos do Ilê Aiyê” não prosperariam com suas mensagens racistas em um país onde não havia racismo (sic), o Afro do Curuzu tem sido um dos principais estruturadores do enfrentamento do racismo no Brasil. Sob a liderança de Mãe Hilda Jitolu e Antônio Carlos dos Santos, Vovó do Ilê Aiyê, grande parte das ferramentas contemporâneas para a desconstrução da discriminação, do preconceito e da intolerância tem nascido da Senzala do Barro Preto, em cada um desses 42 anos e assim, o Ilê continua a Bola da Vez!
As verdadeiras histórias dos povos e dos países do continente africano; a celebração anual de Zumbi dos Palmares e o mês da consciência negra; a observância da identidade e de legados africanos de outros estados, regiões do Brasil e da diáspora; o perfil azeviche; as revoltas inconclusas dos Búzios e dos Malês, além de inúmeros outros ensinamentos, são apenas alguns exemplos das contribuições que o Bloco Afro criado por aqueles jovens do inicio da década de 1970, em plena ditadura militar, vem entregando de forma fraterna, solidária e incansável à nação brasileira. Enfatize-se, portanto, que muito do que vem sendo construído em termos de políticas públicas, especialmente as de ação afirmativa, a partir dos anos de 1980, foram originadas ou ao menos homologadas na Senzala do Barro Preto, espaço que tem se consolidado como uma espécie de bunker democrático do pan-africanismo.
Foi assim que o Ilê viu começar e terminar todos os governos eleitos pela democracia mais recente no Brasil: de Collor a Lula-Dilma1; de João Durval a Jaques Wagner; de Mario Kertész a João Henrique. Não por coincidência, foi do Ilê a primeira Secretária da Secretaria Municipal de Reparação de Salvador, Arany Santana, em 2003 e tão pouco foi por mero acaso que Jaques Wagner, criador da primeira Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Brasil, afirmou que, diferentemente do que mostravam as pesquisas que o colocava como derrotado, nas eleições de 2006, ele seria o governador da Bahia a partir de 2007: ele apenas ganhou aquelas eleições, mas reelegeu-se em 2010 e elegeu o seu sucessor em 2014.
Por tudo isso, resta-nos saudar o aniversariante com um trecho de uma das mais simbólicas de suas canções: “O adoro ilê, tenho orgulho ilê. É o mais pleno e invulgar respeito. Na sua trajetória, tornou-se um monumento irreverente dessa nossa história. Ilê, Ilê, Ilê, Ilê Aiyê… Ilê, Ilê, Ilê, Ilê Aiyê”.