23 novembro 2024
Economista do Ministério da Economia. Mestre em Economia e Doutor em Administração Pública pela UFBA. Autor de diversos trabalhos acadêmicos e científicos, dentre eles o livro Política, Economia e Questões Raciais publicado - A Conjuntura e os Pontos Fora da Curva, 2014 a 2016 (2017) e Dialogando com Celso Furtado - Ensaios Sobre a Questão da Mão de Obra, O Subdesenvolvimento e as Desigualdades Raciais na Formação Econômica do Brasil (2019). Foi Secretário Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) e Diretor-presidente da Companhia de Processamento de Dados do Estado da Bahia (Prodeb), Subsecretário Municipal da Secretaria da Reparação de Salvador (Semur), Pesquisador Visitante do Departamento de Planejamento Urbano da Luskin Escola de Negócios Públicos da Universidade da Califó ;rnia em Los Angeles (UCLA), Professor Visitante do Mestrado em Políticas Públicas, Gestão do Conhecimento e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Professor, Coordenador do Curso de Ciências Econômicas e de Pesquisa e Pós-Graduação do Instituto de Educação Superior Unyahna de Salvador.
O governo Bolsonaro é um fato histórico. Saindo dos porões do baixo clero da política brasileira, o militar reformado fez sua trajetória na penumbra, se esgueirando por trás de suas posições polêmicas estilizadas por manifestações notoriamente racistas, misóginas e homofóbicas, até alcançar a Presidência da República por meio do voto popular, para o delírio histérico daqueles que intentaram, de forma legítima ou não, contra o governo Dilma, o PT, as esquerdas e, principalmente, o ex-Presidente Lula.
Caso o seu governo não imploda antes de seu término regulamentar, ou, a tese do autogolpe de seu vice, continue sendo apenas uma tese, levaremos ainda muito tempo para compreender a complexa trama que o cacifou para chegar ao Palácio do Planalto. Mas, em princípio, algumas questões sobre esse “aborto de coruja” nos impõe algumas reflexões. A primeira delas é que Bolsonaro não é produto dele mesmo, da exposição midiática pós facada ou mesmo da competente gestão das redes sociais como muitos tem alegado e, a partir disto, defendido as mais esdrúxulas justificativas para a sua vitória eleitoral. Do lugar de onde viemos, sempre verificamos que por trás de tudo que se parece muito inovador e aparentemente abstrato, há sempre dispositivos concretos ou simbolicamente estruturados que, vez por outra, se manifesta como se fosse alguma novidade para obscurecer a real percepção de eventos históricos mais complexos.
O sucesso do presidente eleito se deu acima de tudo porque foi Ele que representou nesta eleição, mais eficazmente, o substrato do inconsciente coletivo nacional que tem sido amalgamado pela herança patriarcal, elitista, reacionária e racista prevalecentes nos 518 anos de existência do Brasil. Foi a animosidade latente que envolve essas questões na sociedade que precedeu e dirigiu os movimentos necessários para ele ter recebido a preferência de 55,13% dos votos válidos de uma porção de eleitores que é majoritariamente formada por uma elite econômica e política que impôs, geriu e se e locupletou das vantagens econômicas e sociais nos quase quatro séculos de escravidão no país. Por outro lado, não há como negar a participação significativa da típica classe média e de até alguns representantes de trabalhadores que, infelizmente, ainda não conseguiram se libertar daquilo que Bob Marley oportunamente chamou de slavery metality. Isto é, os supostos votos antissistema, anti-petista e de protesto, por si só, não dariam conta de explicar integralmente o porque de parte de negros, mulheres, homossexuais e, até a parcela de nordestinos que, em conjunto, somam a esmagadora maioria da população brasileira votante, tenham escolhido alguém cuja trajetória política e perfil ideológico sustentam um sem número de proposições que intentam contra os interesses individuais e coletivos desses mesmos grupos sociais.
A vitória de Jair Bolsonaro, portanto, seria apenas mais um curioso paradoxo a ser discutido pelo establishment brasileiro, se a história, a sociologia, a ciência política e até mesmo a psicologia, já não tivessem desenvolvido um sem número de teses e experimentações que tem nos ensinado os motivos, alguns deles sombrios, para explicar os comportamentos de manada reconhecidamente nocivos de determinadas coletividades como o que temos verificado em nossa sociedade nos últimos anos. Isto posto, cabe-nos salientar também que não estamos desconsiderando os problemas criados e sustentados pelos governos anteriores, os quais, também foram responsáveis por criar uma sensação de corrupção endêmica, que vem se sustentando pelo recorrente o envolvimento de petistas em mal feitos; pela amplificação e catalisação dessas ocorrências através da lavagem cerebral midiática kamikaze dos grandes veículos de comunicação de massa e, ainda, pelo desarranjo político e econômico patrocinado pelo abreviado segundo governo Dilma.
Contudo, por mais relevantes que tenham sido esses ingredientes eleitoralmente, a nós nos parece que eles poderiam até explicar a negação política ao PT, mas não necessariamente, justificariam a forma e o conteúdo da adesão popular a uma figura como a de Jair Bolsonaro e os seus, tal como foi verificada. Na prática, o que se está presenciando é a apropriação do aparelho de Estado e das estruturas dos Poderes da República por indivíduos que antes de quaisquer características políticas e institucionais conhecidas, são representantes das posições mais reacionárias do espectro político da sociedade brasileira, construída ao redor da consolidação do clã dos Bolsonaros como força política nacional a partir de dois dos maiores colégios eleitorais do país, independente do resultado final da própria eleição presidencial. Os casos do ex-juiz Witzel, eleito governador do Rio e defensor confesso da anticonstitucional pena de morte sumária para as pessoas das favelas; das megas votações de Janaína Paschoal, de Eduardo Bolsonaro e de Major Olímpio de SP para as diferentes casas legislativas da federação, são exemplos inequívocos para todo esse debate.
De forma muito objetiva, portanto, o que estamos querendo chamar a devida atenção é que em um país com uma cultura do conservadorismo, reacionarismo, de intolerâncias institucionalizadas e sem o pleno desenvolvimento da democracia, como é o Brasil, existem muitos elementos por trás dos discursos moralizantes e de juízos de valor, aparentemente bem-intencionados, que precisam ser levados em conta para avaliações de processos eleitorais de forma mais compreensivas. Com efeito, pode ser até provável que muitos dos 57 milhões de pessoas que escolheram Bolsonaro como o 38º Presidente da República não concordem, conscientemente, com 100% daquilo que ele vem defendendo durante toda sua vida pública. Nos custa crer, por exemplo, que a parte da classe A e B mais escolarizada e informada da população brasileira que, majoritariamente votaram nele, decidiu passar a faixa presidencial para um de defensor confesso de uma das ditaduras mais violentas e sanguinárias do mundo e que assume, publicamente e sem constrangimentos, ter como ídolo e mentor intelectual, o primeiro militar reconhecido pela Justiça de nosso país, como torturador e um dos mais notórios agentes da repressão da ditadura militar, Carlos Alberto Brilhante Ustra. Não obstante, também nos parece perversamente coerente que Bolsonaro represente, em verdade, a persona mais adequada para que as pessoas que a ele dedicaram o seu voto, sintam representados o seu racismo, sexismo, homofobia, xenofobia regional e outras formas de intolerância que, via de regra, vinham sendo mantidas mais ou menos escondidas, nos espaços privilegiados das elites brasileiras.
Nesta senda, a aceitação do ex-juiz Sérgio Moro em se curvar diante do presidente eleito em ato contínuo a proclamação dos resultados da eleição, é a etapa conclusiva do primeiro ato pós-eleitoral desta trama permissiva. Corolário, frise-se, restringe-se a zero o espaço político para se continuar acusando o PT e as esquerdas de todos os males que se abateram sobre o nosso país nos últimos anos e, muito menos exigir, do Partido que venha a público se auto imolar através de um processo de autocritica que, ao fim e ao cabo, apenas serviria ao deleite para os seus detratores, adversários eleitorais e inimigos de classe. Ao subjugar-se as ordens de alguém que se cacifou ao cargo de Presidente da República com notórias posições de defesa a regimes de exceção, contra o estado democrático de direito e com total desprezo aos compromissos institucionais do Estado Brasileiro aos arranjos internacionais relativos aos direitos humanos, Sérgio Moro, além de ter homologado todas as teses do Partido dos Trabalhadores que o apontavam como um dos principais artífices do golpe jurídico parlamentar que derrubou Dilma Roussef e, portanto, totalmente suspeito para julgar o ex-Presidente Lula, demonstrou de forma inequívoca, que a sua sede de poder e militância política ideológica, francamente antidemocrática e conservadora, possui limites incomensuráveis até para a avaliação dos mais experimentados doutores da ciência política em nível mundial.
Neste cenário, o que nos consola é que o universo e as sociedades não se orientam pelas fantasias construídas sobre vaidades de indivíduos que momentaneamente se sentem como verdadeiros desuses diante de vitórias conjunturais. Hitler e Napoleão foram vencidos pelo “general inverno” na Rússia, em guerras que eles imaginavam que seriam vitoriosos de forma inconteste. Mais recentemente, na nossa vizinha Venezuela, Hugo Chaves foi derrotado por um câncer no púbis que interrompeu a sua marcha insana para se perpetuar no poder, criando, infelizmente, uma crise que resultou na transformação de seu antes rico país exportador de petróleo, num fornecedor líquido de refugiados até para o nosso paupérrimo estado de Roraima. Sendo assim, os supostos super-ministros do presidente eleito, Sérgio Moro inclusive, terão contra si kriptonitas guardadas nas gotas de tinta que qualquer caneta bic, que esteja à mão do Presidente, na eventualidade de qualquer um deles sujar as beiradas dos seus penicos dourados na esplanada dos ministérios a partir de janeiro de 2019.