Elias de Oliveira Sampaio

Políticas Públicas

Economista do Ministério da Economia. Mestre em Economia e Doutor em Administração Pública pela UFBA. Autor de diversos trabalhos acadêmicos e científicos, dentre eles o livro Política, Economia e Questões Raciais publicado - A Conjuntura e os Pontos Fora da Curva, 2014 a 2016 (2017) e Dialogando com Celso Furtado - Ensaios Sobre a Questão da Mão de Obra, O Subdesenvolvimento e as Desigualdades Raciais na Formação Econômica do Brasil (2019). Foi Secretário Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) e Diretor-presidente da Companhia de Processamento de Dados do Estado da Bahia (Prodeb), Subsecretário Municipal da Secretaria da Reparação de Salvador (Semur), Pesquisador Visitante do Departamento de Planejamento Urbano da Luskin Escola de Negócios Públicos da Universidade da Califó ;rnia em Los Angeles (UCLA), Professor Visitante do Mestrado em Políticas Públicas, Gestão do Conhecimento e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Professor, Coordenador do Curso de Ciências Econômicas e de Pesquisa e Pós-Graduação do Instituto de Educação Superior Unyahna de Salvador.

Por que não podemos esperar?

Tomo emprestado o título de um dos mais emblemáticos livros do grande líder negro norte-americano, Martin Luther King Jr, “Why We Can´t Wait”, de 1963, para ilustrar o que entendo ser a principal mensagem da Campanha “SALVADOR 2020: EU QUERO ELA”, publicizada mais amplamente para toda a sociedade soteropolitana, no último dia 09 de agosto, no Centro Cultural da Câmara de Vereadores, através do Seminário “PORQUE QUEREMOS ELA”.

Promovido pelo grupo de pessoas e instituições políticas do movimento negro, que se articulam em torno da resenha das terças-feiras no restaurante de Alaíde do Feijão no Pelourinho – a conhecida Bancada do Feijão – o encontro contou com a presença de mais de 250 pessoas, numa chuvosa sexta-feira à noite, para ouvir as mensagens de Vovô do Ilê Aiyê, da socióloga Vilma Reis e do vereador Moisés Rocha, pré-candidatos à prefeitura que, plenamente alinhados com esse debate, marcaram a sua presença e expuseram as suas ideias com o público que lhes prestigiaram, interagindo fortemente com as provocações preliminares feitas pelo professor Samuel Vida.

Muito atento a todas as intervenções, não pude resistir a fazer uma associação entre o conteúdo de todas as abordagens, com as reflexões propostas por Luther King, em seu quase sexagenário livro. De fato, há 60 anos, o político afro-americano partiu do exemplo das péssimas condições de vida dos jovens do Harlem, bairro negro da progressista Nova York, municipalidade mais importante de toda costa Leste do norte dos EUA e de Birmingham, maior cidade do Alabama, um dos lugares mais racistas do chamado sul profundo da terra do “Tio Sam”, para chamar atenção de que esses mesmo jovens, ainda que separados por quilômetros de distância, deviam estar a se perguntar: por que a miséria constantemente assombra o povo negro americano?

A partir deste mote, ele faz uma retrospectiva dos avanços da luta pelos direitos civis, desde quando se inicia o fim da segregação racial nas escolas dos EUA (1954). Perpassou pelo boicote aos ônibus em Montgomery-Alabama (1955 e 1956), iniciado por Rosa Parks. Relembrou a sua passagem pela prisão de Birmingham e avançou em sua própria provocação vaticinando: Nós não podemos esperar, porque as cadeias estão cheias de homens jovens, incluindo muitos que são pais, mas estão impossibilitados de exercer a sua própria paternidade. Nós não podemos esperar, porque sabemos agora que, não fazer da educação uma prioridade, retira as possibilidades de muitos talentos latentes [negros] no seu próprio país. Nós não podemos esperar, porque nossos jovens, homens e mulheres, estão sendo programados para matar por amor à pátria [no Vietnã].

Guardados os devidos condicionantes históricos de sua fala, não há como não identificar em seu discurso, parte expressiva da realidade objetiva dos negros brasileiros e, em especial, dos negros da quadricentenária Salvador. Ademais, sendo os negros e negras a ampla maioria da população desta cidade, a este grupo populacional particular, nunca foi disponibilizado pelos partidos políticos relevantes, alguém com o perfil semelhante “à sua cara”, enquanto eleitores, como uma opção para ser o mandatário ou mandatária do espaço geográfico mais africano fora da África. Porque?

Esse é o nó górdio que a Campanha “SALVADOR 2020: EU QUERO ELA” está se propondo a desatar. Ou seja, o cerne do que está sendo colocado por uma gama significativa de mulheres e homens negros, muitos dos quais, representantes das mais legitimas entidades do movimento social, organizações da sociedade civil e de partidos políticos, não é ser contra, a priori, a quaisquer desejos de candidaturas ou preferências partidárias, por indivíduos brancos de ascendência europeia, para representar as suas respectivas plataformas políticas. No entanto, o que não pode mais ser tomado como aceitável, deixar de ser problematizado com toda a sociedade e tentar ser desconstruído por dentro dos partidos políticos, especialmente aqueles que se autodenominam como progressistas, são os desconfortáveis e desconcertantes motivos pelos quais, nos longos 470 anos de existência desta Capital, os escolhidos por essas agremiações partidárias para representar os seus projetos de poder, continuam a ser, tão somente, pessoas com as características fenotípicas dos colonizadores racistas do século XVI.

Pior do que isto: considerando a inconteste segregação espacial, econômica, social e institucional a que tem sido submetida a população negra de Salvador, mesmo após 130 anos do fim da escravidão, a continuidade desse padrão de escolha política eleitoral, expõe, um irracional movimento em prol de uma conveniente espécie de incompetência política e administrativa, ou, no limite do maquiavelismo, a mais nítida face de um tipo de perversidade, porque não há mais como esconder que a miséria e a pobreza, características da grande maioria da população negra de toda a Salvador, é o efeito mais direto da incapacidade dos responsáveis pelas políticas públicas locais, em implementar ações eficazes e efetivas para mitigar o círculo vicioso do nosso centenário subdesenvolvimento, posto que, deliberadamente, não tem sido feito o uso de todos os instrumentos e dispositivos disponíveis e necessários para romper o histórico processo de desigualdade socioeconômica estruturada pelo racismo que, ao fim e ao cabo, é o elemento impeditivo central para o pleno desenvolvimento de nossa cidade.

É nesse sentido, frise-se, que não podemos deixar de associar as sofríveis condições materiais e imateriais de sobrevivência da grande massa de soteropolitanos de origem africana, a essa realidade construída por séculos e séculos, mas que vem sendo mantida nos últimos anos de forma praticamente inalterada, mesmo com a experiência de poder e de hegemonia eleitoral de partidos de centro-esquerda nos processos políticos nacionais e subnacionais, a partir da redemocratização na segunda metade dos anos de 1980.

Diante disto, ao constatar a persistência de indicadores de condições de vida do povo negro de Salvador em padrões muito próximos aos daqueles observados no período do escravismo, torna-se insuportavelmente inaceitável, a insistência das lideranças dos partidos políticos, à esquerda e à direita, em impor um modelo de escolhas eleitorais feitos pelas burocracias ou cartórios partidários sob sua influência, partindo de apaixonadas defesas públicas, as vezes até cínicas, das mesmas estratégias e táticas eleitorais de sempre. Ou seja, o fetichismo eurocêntrico é tamanho que tudo pode ser discutido, desde que não sejam verdadeiramente alterados os interesses do grupo racial dominante espraiado por todas as classes sociais: “o homem adulto branco deve – sempre – estar à frente e no comando”.

Compreender a profundidade dessa complexa situação serve para levantar algumas questões que nos parecem relevantes, mas que ainda se encontram carentes de uma discussão pública franca e sem rodeios. A primeira delas, é que a proposição de uma candidatura negra de centro-esquerda para a Prefeitura de Salvador, não se constitui, sob qualquer hipótese, numa ação invertida de racismo dos negros para com os brancos, como prontamente tem sido apontado pelos neófitos de plantão e/ou alguns mal-intencionados interlocutores sobre o debate das relações raciais no Brasil. Nesse mesmo diapasão, igualmente não é razoável aceitar de bom grado, que supostos representantes históricos da luta antirracista e de esquerda, estejam tentando taxar a iniciativa da Campanha “SALVADOR 2020: EU QUERO ELA” como uma posição “racialista” (sic), ou mesmo, uma demanda política de caráter indentitário (sic) e, como tal, deva ser relegada a algo marginal e fora do eixo estruturante do debate político mais estratégico das agremiações partidárias que deverão dirigir o processo eleitoral.

Na prática, declarações como essas quando são feitas por aparentes representantes da esquerda e, as vezes até por ditos representantes do movimento negro, nada mais são do que uma forma rebuscada de tratar a estúpida noção do racismo ao contrário, muito utilizado pelo campo político mais reacionário e conservador da nossa sociedade, sempre que alguns negros se insurgem, de forma mais qualificada no debate socioeconômico ou político-institucional, revelando de forma cristalina o nível de mediocridade ou das contradições de discursos e intervenções de alguns “donos do assunto”, causando-lhes prejuízos políticos e pecuniários por fragilizar a venda de seus acordos tácitos quando da cobrança das faturas por parte de seus respectivos senhores e patrões de momento.

Com efeito, exceto em países de segregação racial formalmente institucionalizada, como fora o regime de Apartheid na África do Sul até o ano de 1994, ou mesmo, nos estados americanos regidos pelas leis de Jim Crow até o ano de 1965, toda e qualquer sociedade orientada pelo republicanismo e/ou pela democracia representativa, guardadas algumas especificidades, toma como princípio geral a ideia de “um homem, um voto” e por isso, as representações político-institucionais de cada uma dessas comunidades se apresentam com um nível de diversidade racial compatível com a média da composição dos diferentes grupos sociais residentes em cada um desses lugares. Com efeito, importantes cidades mundiais como Atlanta (54% de negros), Chicago (32,9% de negros) e Washington DC (48,3% de negros), são hoje exemplos emblemáticos que ilustram adequadamente essa nossa problematização, por terem sido dirigidas na maioria das vezes, a partir dos anos de 1970, por negros e negras eleitos democraticamente.

Pergunta-se, portanto, porque isso nunca foi possível acontecer em Salvador, uma cidade com uma  mais de 80% de negros em sua população?

A resposta é óbvia, as forças socioeconômicas e político-institucionais que, de maneira perversamente sofisticada e exitosa, conseguiram manter um regime de escravidão por quase quatro séculos, também foram exímias em subverter a lógica de “um homem, um voto”, de forma tão eficaz que tem conseguido naturalizar, o fato de apenas 15% de uma população branca vir hegemonizado os espaços de poder político, econômico e social, sem se sentir obrigada a negociar, uma única experiência sequer, de oportunizar a genuínos representantes dos 85% do restante de sua população, um real momento de exercício de poder compartilhado através de eleições democráticas. Nesse sentido, causa espécie que mesmo agora, no limiar do século XXI, ainda existam pessoas que, por ingenuidade ou desonestidade intelectual, ainda defendam que situações históricas como essa, possam ser resolvidas “por gravidade” ou pela boa vontade daqueles que sempre tiveram a prerrogativa de trabalharem pelos seus próprios interesses materiais e institucionais, desde sempre e sem sobressaltos.

Ademais, do lugar de onde observo, e à luz do que vem ocorrendo em toda a nossa sociedade, a partir das forças retrógradas e profundamente perigosas que tem emanado do planalto central deste país, não me resta sombra de dúvidas, que o destino pode reservar a população brasileira de ascendência africana, um retrocesso socioeconômico e político-institucional muito maior do que todos aqueles observados na recente história da nossa jovem e frágil democracia. Por isso, não devemos mais apenas “saber ser”, mas, oportunamente, precisamos “saber fazer”, ou, como dizia a saudosa e sábia Mãe Stella de Oxóssi: “O Nosso Tempo é Agora”.

SALVADOR 2020: EU QUERO ELA!

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