29 novembro 2024
As sessões de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da tese do marco temporal para ocupação de terras indígenas foram marcadas por citações recorrentes ao caso Raposa Serra do Sol, cujo acórdão foi responsável por reacender a discussão sobre a existência, ou não, de data-limite para que as comunidades indígenas reivindiquem a posse sobre terras.
Embora a decisão naquele momento, em 2009, tenha sido favorável aos povos originários, os representantes de setores agropecuaristas foram os que mais fizeram referências ao caso, com citações diretas ao voto do ministro-relator, Carlos Ayres Britto, nas sustentações orais em defesa do marco temporal.
Os argumentos do ministro defendem a existência de marco temporal na data da promulgação da Constituição da República, em 5 de outubro de 1988, porém, com uma série de salvaguardas favoráveis aos indígenas. Em entrevista ao Estadão, Ayres Britto falou sobre os meandros do seu voto revivido 12 anos após a discussão em plenário. Para ele, a decisão alcançada naquele momento foi um divisor de águas, pacificador, claramente favorável aos direitos indígenas e mirando a reparação histórica.
O senhor falou que o marco coloca “uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena”. O que isso quer dizer de forma objetiva?
De forma objetiva, para que a questão indígena não fosse uma questão sempre em aberto, gerando conflitos, vias de fato e violência, decidimos aceitar que o marco temporal foi esse. Quando a Constituição disse sobre “as terras que ocupam”, nós nos louvamos na semântica da Constituição para chegarmos a uma conclusão, com as salvaguardas que eu estabeleci em favor dos índios. Se eles não estivessem no dia 5 de outubro na ocupação de determinada área por impossibilidade física, por efeito de esbulho, ameaça, violência e coação. A vontade interpretativa que nós respiramos foi essa de enxergar na Constituição uma vontade firme, objetiva, forte, de favorecimento das comunidades indígenas.
O senhor avalia que a sua preleção durante o julgamento foi deturpada para atender a interesses pessoais?
Eu recebo isso com estranheza, porque o que nós fizemos ali, por um placar expressivo, foi reconhecer a dignidade das nossas populações indígenas, com aquelas salvaguardas que fizemos. A demarcação seria sobre formato contínuo, não tipo queijo suíço, não fragmentado. Era preciso evitar o etnocídio. Tivemos o cuidado de dizer que não há povos indígenas, embora a imprensa use essa expressão, porque só há um povo brasileiro. A Constituição, quando fala dos índios, fala em comunidades e populações indígenas, não há nações indígenas, a nação é brasileira. A Constituição não falou de territórios indígenas, falou de terras, que é uma expressão sociocultural, produtiva. A palavra terras tem um significado sociocultural antropológico, ao passo que território tem um significado político e só há um território, que é o brasileiro. Eu tive esses cuidados todos em favor dos índios, porque o propósito da Constituição não foi substituir a cultura do índio pela do branco, foi somar uma à outra. Tudo para prestigiar as etnias indígenas. Tudo que foi feito ali (Raposa Serra do Sol), tirando essa questão do marco temporal, que causa dúvida, foi feito numa perspectiva de interpretar a Constituição como efetivamente ela deve ser interpretada: em favor das comunidades e populações indígenas.
O senhor avalia que houve alguma forma de imprecisão ao citar o marco temporal da ocupação?
Eu não diria má-fé, ou deturpação, eu diria que estão dando uma interpretação equivocada, indevidamente reducionista das coisas. Os anos passam e querem inverter as coisas, desfavorecer as comunidades indígenas, isso é reducionismo tecnicamente equivocado. É uma postura interpretativa na contramão da Constituição e fora do ambiente em que nós decidimos. O Brasil pagou uma dívida histórica, por intermédio do Supremo, e agora querem estornar a dívida para fazer o Brasil voltar a ser devedor das comunidades indígenas.
Qual foi o entendimento concreto daquela decisão do caso Raposa?
Nós entendemos que ali havia um limite semântico que não podia ser transposto: o tempo do verbo ocupar. Porém, eu tive o cuidado e fui seguido pelos ministros, eles também foram muito cuidadosos, de dizer que o marco temporal do dia 5 de outubro de 1988 não seria considerado – seria afastado – naquelas situações em que os índios não se encontrassem em uma determinada área geográfica por impossibilidade, porque estavam escorraçados, coagidos, ameaçados, foram expulsos. Se ficasse comprovado esse estado de coisas, o marco temporal não prevaleceria. Nós dissemos isso no meu voto e no acordão também.
Qual a opinião do senhor sobre um eventual reconhecimento do marco temporal?
Quando o Supremo vai decidir uma questão, eu não falo sobre essa questão, quanto mais naquelas questões nas quais eu fui relator e participei delas. Não me sinto muito à vontade para falar sobre isso.
Na época, o senhor falou que estava se atendo a uma questão semântica do verbo ocupar…
Não foi apenas. A semântica nos ajudou a entender o significado do marco temporal.
No voto, o senhor fala em marco temporal da ocupação, trecho que tem sido utilizado por agropecuaristas como argumento, mas, também, em marco da tradicionalidade da ocupação. Qual das duas leituras deve prevalecer?
Às vezes, pela questão da tradicionalidade, é possível interpretar a extensão territorial da posse dos indígenas ampliativamente, e não de modo reducionista, para homenagear a tradicionalidade como cultural. Essa passagem do voto foi para conferir à dimensão geográfica da ocupação um sentido extensivo, e não reducionista, foi para favorecer os índios também. Nós dissemos isso.
Então, apesar de a semântica ser importante e ser o que balizou o voto do senhor e de outros ministros, o verbo “ocupar”, no tempo presente não é restritivo?
Não é restritivo. A interpretação que se faz quanto à delimitação da extensão territorial fundiária é sempre em sentido ampliativo, e não reducionista.
Weslley Galzo/Estadão Conteúdo