24 dezembro 2024
Adriano de Lemos Alves Peixoto é PHD, administrador e psicólogo, mestre em Administração pela UFBA e Doutor em Psicologia pelo Instituto de Psicologia do Trabalho da Universidade de Sheffiel (Inglaterra). Atualmente é pesquisador de pós-doutorado associado ao Instituto de Psicologia da UFBA e escreve para o Política Livre às quintas-feiras.
Ontem um amigo postou no facebook uma observação interessante, algo que dizia mais ou menos assim: […] Não entendo como as pessoas podem reclamar da violência e depois saquear caminhões e mercados. Éramos honestos até a greve da polícia! Esta constatação de que o limiar entre civilização e barbárie é muito tênue podendo ser transposto facilmente tem sido uma constante nos últimos dias e parece que pegou muita gente de surpresa. Entretanto, este é um debate antigo, mitológico até, que guarda relação com a definição da natureza humana.
Em meio ao caos que se instalou na cidade lembrei-me várias vezes da estória do Mogli, o menino lobo que foi popularizada e romantizada por Walt Disney, mas cuja estória tem origem em um conto de Rudyard Kipling, o Livro da Selva.
Essa lembrança veio por ser ela um bom exemplo de como nossas concepções de mundo estão entranhadas por visões românticas sobre o homem. A estória é bastante conhecida. Trata de um menino que se perdeu nas selvas da Índia tendo sido criado por uma alcateia, tendo uma pantera e um urso como amigos. Tanto em uma estória quanto em outra, Mogli tem padrões de comportamento e inteligência totalmente humanos tendo ainda desenvolvido habilidades extraordinárias em função de sua convivência com os animais. Esses contos sugerem a existência de uma natureza humana (uma essência) que se manifesta independentemente do contexto.
O problema destas estórias é que elas não são verdadeiras nem encontram amparo nas evidências empíricas. Em estado natural não somos bons, somos tão animais como os outros animais. Os melhores exemplos que ilustram essa constatação estão justamente nos relatos e nas descrições do comportamento de crianças que foram REALMENTE criadas por animais ou que cresceram isoladas, sem contato com outros seres humanos. Existem vários casos bastante conhecidos e documentados a este respeito. Um deles é o de Victor de Aveyron, um menino de cerca de doze anos de idade que, ao ser descoberto nas florestas da França em 1800, não falava, andava de quatro e tinha um grau de desenvolvimento intelectual equivalente ao de uma criança. Vários esforços de educação foram feitos, entretanto com pouco sucesso.
É justamente porque em estado natural impera a lei da selva que precisamos de regras e controles para que mantenhamos a convivência entre os indivíduos dentro de limites aceitáveis. Aqui entram em cena duas instituições fundamentais para a vida em sociedade: a escola e a polícia. É na escola (entendida como um espaço fundamental da educação ao lado da família) que aprendemos como devemos nos comportar em sociedade. Já a polícia existe para nos lembrar destas regras quando elas são esquecidas. Não podemos abrir mão nem de uma nem de outra, por mais defeitos que elas tenham. Elas podem e devem ser aperfeiçoadas, mas dificilmente poderão ser abolidas.
Em uma sociedade onde a educação é ruim e a polícia está ausente impera o caos, como as imagens de Salvador nos últimos dias mostraram de forma bastante eloquente.