23 novembro 2024
A atuação do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na área de transportes vem deixando investidores em dúvida e gerando atrasos em cronogramas de empreendimentos. A situação afeta rodovias, portos e aeroportos e está ligada a disputas políticas e ideológicas.
A orientação do PT contra privatizações paralisou o projeto de transferir à iniciativa privada o porto de Santos, assim como os últimos aeroportos da estatal Infraero. A atuação da presidente do partido, Gleisi Hoffmann, tem emperrado ainda a concessão de rodovias no Paraná.
Também por orientação do governo, o ministro Márcio França (Portos e Aeroportos) descartou que concessionárias possam cumprir suas obrigações com o poder público usando precatórios (dívidas a serem pagas pelo Estado a contribuintes, após decisão judicial). O mecanismo foi criado por emenda constitucional e seu veto gera preocupação no setor.
Nesta semana, França protagonizou mais um episódio —nesse caso, por anunciar uma medida sem aval superior. Ele disse ao jornal Correio Braziliense em entrevista publicada no domingo (13) que prepara um programa de venda de passagens aéreas a R$ 200 para pessoas de baixa renda, mas foi desautorizado.
Na terça-feira (14), ele tomou uma bronca do presidente Luiz Inácio Lula da Silva —que proibiu ministros de lançarem “genialidades” sem antes consultar a Casa Civil. França não estava presente e não foi mencionado explicitamente.
Primeiro, por meio de sua assessoria, o ministério disse que o recado era para toda a Esplanada. No entanto, o ministro assumiu a crítica a jornalistas durante o lançamento da Frente Parlamentar Mista de Portos e Aeroportos, reconhecendo que a proposta não passou pela Casa Civil.
O ministro reiterou, no entanto, que o projeto não envolve subsídio público e que está sendo desenvolvido pela Secretaria de Aviação Civil (SAC). “Tão logo esteja formulado, será apresentado para apreciação da Casa Civil”, disse em nota.
Na época da transição, França já havia pedido a suspensão de privatizações em andamento.
Em outra frente, sua pasta já vem sendo questionada por concessionários de aeroportos que pretendem pagar uma parcela da contribuição inicial da outorga com precatórios. Sua posição foi clara: recusar esses papéis como pagamentos em concessões.
No final de 2021, o Congresso aprovou uma emenda constitucional permitindo o uso desses papéis para o pagamento de concessões de forma “autoaplicável”, mas em algumas alas do novo governo ainda é vista como necessária a criação de uma metodologia mais robusta para liberar as transações.
A situação já embaraça cinco concessões —três delas em aeroportos, incluindo o bloco liderado por Congonhas, leiloado no final do ano passado, e duas ferroviárias. A Rumo foi à Justiça para discutir o assunto.
O uso de precatórios foi uma medida idealizada pelo ex-ministro da Economia de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes, e defendida pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional como forma de reduzir a dívida da União e atrair investidores.
Como existe um cronograma anual de pagamento dos precatórios, aceitá-los como moeda em concessões não traria grandes mudanças.
O novo governo, no entanto, discorda. Embora exista regulamentação para o abatimento de dívidas de contribuintes com precatórios, não há um processo de operacionalização do uso desses papéis no pagamento de concessões.
Apesar disso, o cumprimento da Constituição é considerado inadiável por procuradores federais ouvidos sob anonimato.
A Folha perguntou se o Ministério de Portos e Aeroportos iria ignorar a previsão constitucional do mecanismo. Por meio de sua assessoria, o ministério informou que “ainda aguarda uma portaria da AGU (Advocacia-Geral da União) e que, neste momento, reavalia o uso de precatórios para pagamento de outorgas”.
No caso do porto de Santos, foi criado um impasse e o projeto aprovado pelo TCU (Tribunal de Contas da União) está paralisado.
Alas do PT preferem manter o terminal sob gestão pública e conceder o canal e armazéns. Esse modelo, no entanto, não atende aos interesses dos grupos que usam o porto para exportações —especialmente aqueles sediados em São Paulo e no Centro-Oeste.
Os investimentos pesados para fazer dobrar a capacidade só sairiam do papel, segundo esses grupos, se todo o porto fosse privatizado.
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas —ex-ministro de Infraestrutura, responsável pela condução do projeto de privatização do porto— tenta com o governo federal aprovar um plano B, capaz de agradar aos diversos interessados.
Até o momento, no entanto, as conversas não avançaram. Embora o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, tenha dito publicamente que o governo “não tem dogmas” sobre o tema, França afirmou que o porto de Santos, o maior da América Latina, não será privatizado.
“No porto de Santos serão realizadas concessões de terminais e serviços portuários”, disse a pasta por meio de sua assessoria. “Entretanto, a autoridade portuária será mantida pública.”
Além das divergências técnicas, existe no PT uma enorme resistência ao governador de São Paulo, um afilhado político de Jair Bolsonaro. Lula tenta apaziguar os ânimos, mas a pressão do partido não arrefece.
DISPUTA POLÍTICA
Nas rodovias, a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, protagoniza um dos maiores embates políticos usando sua influência no governo para modificar um projeto do governador do Paraná, Ratinho Junior (PSD).
O embate envolve o ministro de Transportes, Renan Filho (MDB-AL), e a Casa Civil em torno da concessão de mais de 44 mil km de rodovias no Paraná. O projeto deve exigir investimentos de mais de R$ 90 bilhões.
“Em relação às concessões de rodovias no Paraná para novo pedágio, a equipe de transição do governo Lula está analisando a mudança de critério do leilão para baixar o preço da tarifa e vai solicitar alteração do edital neste sentido”, afirmou Gleisi em novembro.
No início deste mês, os detalhes do projeto seriam anunciados em um evento com o governador, mas ele foi cancelado na última hora. Segundo assessores, seria divulgado o acordo para que os 2 primeiros lotes de rodovias —de um total de 6— fossem leiloados. Ambos já tiveram aprovação do TCU.
Esse anúncio foi feito depois de diversas reuniões entre o ministro Renan Filho e a Casa Civil. A primeira reunião, no entanto, foi marcada a pedido de Gleisi, que tentou minar o projeto, ainda segundo relatos, para modificá-lo totalmente.
A presidente do PT não concorda com o modelo de concessão aprovado, que dificulta a redução do pedágio. Para a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e para os técnicos do TCU, o caixa da concessão pode ser posto em risco, ameaçando os investimentos, se a redução da tarifa for motivada por uso político.
De acordo com a modelagem previamente aprovada, há uma escala de investimentos próprios a serem feitos ao longo de cada ano pelo concessionário para que ele tenha o direito de conceder descontos no pedágio.
Essa cláusula garante que sempre haverá dinheiro no caixa (por meio do depósito obrigatório) para alguma emergência, mesmo com a redução do valor do pedágio.
Desde 2019, o governo do Paraná tenta viabilizar a concessão de 3.300 quilômetros de rodovias estaduais e federais que cortam o estado, dos quais 1.782 quilômetros precisam de obras de duplicação.
Nesta semana, o vice de Ratinho Junior enviou uma carta ao ministro pedindo que apresse a concessão. O assunto, ainda segundo assessores, foi parar na mesa do presidente Lula.
Consultada, Gleisi Hoffmann disse, via assessoria, que a redução do pedágio nas rodovias do Paraná é um compromisso de campanha do PT estadual e do presidente Lula, que implica numa nova modelagem de concessão, ainda em construção no âmbito do governo federal.
Julio Wiziack/Folhapress