23 novembro 2024
Lucas Faillace Castelo Branco é advogado, mestre em Direito (LLM) pela King’s College London (KCL), Universidade de Londres, e mestre em Contabilidade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É ainda especialista em direito tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) e em Direito empresarial (LLM) pela FGV-Rio. É diretor financeiro do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) e sócio de Castelo e Dourado Advogados.
Santo Agostinho afirma que lei injusta não é lei. A aceitação dessa definição depende de como se concebe o direito. A frase do filósofo cristão releva a dicotomia entre o direito natural e direito positivo. Lei, para Agostinho, só é legítima se for justa. Entretanto, atualmente, é possível conciliar as duas visões.
Não é novidade que, no curso da história, crueldades foram praticadas com respaldo na lei (se acolhermos a posição de Agostinho, não eram verdadeiramente leis). Algumas delas retrospectivamente consideradas como cruéis, com base em outro universo valorativo; outras, cruéis até mesmo para sua própria época. Foi em razão do conflito entre as leis vigentes e a percepção moral de sua injustiça que emergiu o direito natural.
O direito natural tem raízes na antiguidade e fundamenta-se na ideia de as leis são descobertas, não podendo ser fruto da mera vontade impositiva do homem. O direito natural, então, fixa limite a essa vontade, devendo a lei conformar-se com o que é justo (o que seja o justo nem sempre é incontroverso, e tal afirmativa ganha ainda mais importância na modernidade).
Aristóteles distingue a justiça distributiva da justiça corretiva. A primeira diz respeito à igualdade política e pretende responder sob quais critérios os bens sociais devem ser distribuídos. Inúmeros podem ser vislumbrados, tais como posição social, mérito, esforço, descendência. Todos, contudo, trazem problemas consideráveis: a dificuldade de defini-los e de eleição do critério e de como, uma vez eleito, identificar a situação da vida que nele se enquadra.
Já a justiça corretiva prescinde dos critérios mencionados e leva em consideração as relações entre indivíduos enquanto indivíduos. Ela busca restabelecer algum equilíbrio quebrado e a solução do conflito encontra-se previamente definida em lei, partindo-se do pressuposto que casos semelhantes devem ser tratados de forma igual como imperativo de justiça.
Ciente, contudo, de que a lei abstrata poderia resultar em decisões injustas em circunstâncias particulares que escapasse à justiça concebida por meio dela, Aristóteles propõe a decisão por meio da “epeikeia” (equidade). A equidade é a emanação de princípios de justiça universais e imutáveis, que seria invocada para afastar-se a decisão moralmente insustentável (ou seja, a aplicação cega da lei). Não obstante, a decisão por equidade, no contexto dos Estados Democráticos de Direito, não é geralmente aceita.
Após Aristóteles, Cícero propõe que a legitimidade da lei, produto da racionalidade humana, reside em sua harmonia com as forças da natureza. Esta possui racionalidade própria e o homem, como parte dela – e dotado de razão – deveria fazer suas leis espelharem esse “logos” universal.
São Tomás de Aquino, em seguida, adapta as ideias dos antigos sintetizando-as com o cristianismo. Divide as leis em eterna, produto da razão divina e não conhecíveis pelos homens; lei natural, acessível aos humanos por meio da razão como reflexo do divino em nós, permitindo-nos tornar agentes morais; a lei humana, produto da vontade humana e, finalmente, a lei divina. Está última nos foi dada como revelação, por meio das escrituras, como guia para nossas ações, pois a razão humana é falível.
O direito natural, como se vê, é uma constante na História da Civilização Ocidental. Em contraposição a ele, surge o positivismo jurídico como pensamento organizado, no contexto histórico do surgimento dos Estados-nações.
Segundo o positivismo, a lei é simplesmente fruto da decisão humana, seja de um indivíduo ou de uma coletividade, não importando sua qualidade. Busca-se, com isso, simplesmente descrever os sistemas de leis, como dados objetivos, adequando o direito a visão mais científica.
A concepção positivista ajusta-se bem aos Estados modernos multiculturais e democráticos. Neles, frequentemente não há consenso entre o certo e o errado, não podendo a lei refletir o código moral da sociedade, porque não há o código moral, mas vários, com algumas fundamentais intersecções. Nesse cenário, a legitimidade da lei se dá com sua forma democrática de elaboração, como produto da vontade da maioria, que é sempre provisória.
Em que pese a visão positivista contraposta ao direito natural, é certo que nenhum poder Estatal se sustenta quando há dicotomia profunda entre os valores morais fundamentais e as leis, principalmente na face do direito mais sensível ao sentimento de justiça das pessoas, que é o direito penal.
Por isso, não se desconsidera a necessidade de haver um núcleo normativo essencial e intangível, produto da influência do direito natural, como os direitos e garantias fundamentais previstos em constituições, sobre os quais nem a vontade da maioria pode dispor.
Os direitos e garantias fundamentais, mais do que produto de uma razão abstrata, é fruto do que se consagrou, na história, como direito natural. Os acontecimentos catastróficos do século XX tiveram particular importância na consagração de alguns deles.
Dessa forma, há compatibilização entre as duas visões: em geral, a lei para ser lei não depende de qualificação. Mas, ao mesmo tempo, há um campo do sistema normativo, de natureza principiológica, em que o direito natural foi positivado, servindo de limite ao arbítrio da vontade humana e permitindo a interface entre a lei e a evolução moral da sociedade, ao menos nos aspectos mais fundamentais.