30 outubro 2024
Se dependesse apenas de deputados evangélicos, duas bandeiras caras ao bolsonarismo teriam vida fácil no Congresso. O bloco votou em peso para aprovar o voto impresso e para dificultar a demarcação de terras indígenas.
A primeira proposta ficou sem os 308 votos necessários no plenário da Câmara. A segunda ainda não chegou lá, mas em junho ganhou sinal verde na principal comissão da Casa, a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça).
O mapeamento de como votam os congressistas brasileiros com identidade religiosa está na plataforma Religião e Poder, parceria do Iser (Instituto de Estudos da Religião) com a empresa de mídia Gênero e Número. O projeto ganha novo site nesta terça-feira (24).
O presidente Jair Bolsonaro fez um de seus muitos cafunés nos parlamentares evangélicos no mesmo dia em que anunciou sua intenção de indicar um ministro com essa fé para o STF (Supremo Tribunal Federal), em julho de 2019 —promessa que cumpriu dois anos depois, com a nomeação do presbiteriano André Mendonça, ainda no aguardo de sua sabatina no Senado.
“Vocês foram decisivos na busca da inflexão do resgate dos valores familiares”, disse Bolsonaro então. “Quantos tentam nos deixar de lado dizendo que o Estado é laico? O Estado é laico, mas nós somos cristãos. Ou, para plagiar a minha querida Damares [Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos], nós somos terrivelmente cristãos.”
“Os Deputados de Deus”, reportagem publicada na edição de 1º de julho de 1987 da revista Veja, descreve o papel dos 33 constituintes que tinham como meta de seu “apostolado parlamentar” confeccionar uma Carta nacional a imagem e semelhança “da carta magna de Deus aos homens, a Bíblia”.
Evangélicos inauguraram naquele ano sua primeira bancada em Brasília, ainda de maneira informal. A frente parlamentar foi oficializada em 2003 na Câmara e, desde então, agigantou sua presença nos governos que se seguiram, de Lula (PT) a Bolsonaro (sem partido).
A plataforma do Iser ajuda a dimensionar o quão fiel ao presidente é o bloco evangélico, que ganhou relevo inédito na gestão bolsonarista.
A PEC do voto impresso foi arquivada após 229 deputados votarem a favor dela, 79 endossos a menos do que ela precisava. O Iser analisou o posicionamento de 449 deputados que participaram da votação (um se absteve, o outro, Arthur Lira, não votou por ser presidente da Câmara).
Desse montante, 319 deputados estão em pelo menos uma das três frentes parlamentares religiosas que o instituto monitora: a católica, a evangélica e a de defesa dos povos tradicionais de matriz africana. São eles: 191 católicos, 80 evangélicos, 12 cristãos (sem especificar de qual linha), 4 espíritas, 1 espiritualista, 1 da União do Vegetal, 1 ateu, 1 agnóstico, 8 não identificados e 20 sem religião.
Vejamos os dois maiores filões religiosos, representativos de um país onde oito em cada dez pessoas se dizem cristãs, como mostram dados do Datafolha. Entre católicos, 100 disseram não, e 90, sim à causa defendida por Bolsonaro —há Lira ainda, que não vota. Na parcela evangélica, só 8 ficaram contra, enquanto 72 apoiaram que os números digitados por cada eleitor na urna eletrônica sejam impressos.
Outro exemplo: o escrutínio na CCJ do projeto de lei que estorva a delimitação legal das áreas indígenas.
Nenhum dos 21 votos contra a proposta, tida como progressista, pertence a um evangélico. Marco Feliciano (Republicanos-SP), da Assembleia de Deus, o anglicano Kim Kataguiri (DEM-SP) e Marcos Pereira (Republicanos-SP), bispo licenciado da Igreja Universal, estão entre os 11 representantes do segmento favoráveis à ideia, aprovada com o voto de 40 deputados no total.
Apenas um deputado avesso ao projeto é signatário da Frente Parlamentar Evangélica, e ele é católico: Flavio Trad (PSD-MS). É comum que blocos temáticos no Congresso contem com “forasteiros”, já que muitos deputados incluem seu nome na base da camaradagem, para ajudar as frentes a alcançar as 171 assinaturas mínimas para que possam existir.
O número de católicos é proporcionalmente menor (58%) entre os 40 membros pró-demarcação na comissão do que os contrários (76%).
No Brasil de 2021, incluir-se no catolicismo costuma ter menos peso, já que há muitos não praticantes nessa religião. Isso se reflete na política. Não à toa a repercussão da própria bancada católica nos assuntos legislativos é bem mais tímida do que a da irmã evangélica.
“Como a religião tem um lugar importante na cultura brasileira, ela nunca esteve fora desta relação com a política. Afinal, o catolicismo chegou por aqui com os colonizadores e até hoje exerce uma influência nos espaços de poder”, diz Magali Cunha, pesquisadora do Iser. “Porém, foi a ocupação de espaços por evangélicos a partir dos anos 1980, no Legislativo, no Executivo e, mais recentemente, no Judiciário, que levantou a atenção para esta discussão.”
Uma gradação que, segundo Cunha, “explode com o processo eleitoral de 2018, com as alianças religiosas em torno de Bolsonaro, que instrumentalizou, de forma inédita, a dimensão religiosa em uma campanha à Presidência”.
A plataforma Religião e Poder oferece, na repaginação que estreia nesta terça, novidades como a seção Glossário, que explica em linguagem simples termos recorrentes no debate, como “laicidade”.
A ideia é permitir que qualquer interessado tenha fácil acesso a conteúdos sobre religião produzidos por pesquisadores qualificados, diz a antropóloga Lívia Reis, coordenadora de Religião e Política no Iser. “A gente mostra como membros das frentes parlamentares com identidade religiosa se comportam em votações importantes no Congresso, identifica atores influentes dentro de cada frente, analisa como religiosos vêm ocupando também cargos no segundo escalão do governo Bolsonaro.”
Anna Virginia Balloussier/Folhapress