23 novembro 2024
Lucas Faillace Castelo Branco é advogado, mestre em Direito (LLM) pela King’s College London (KCL), Universidade de Londres, e mestre em Contabilidade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É ainda especialista em direito tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) e em Direito empresarial (LLM) pela FGV-Rio. É diretor financeiro do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) e sócio de Castelo e Dourado Advogados.
A democracia é o regime em que se confere poder político ao povo. Nas democracias indiretas, esse poder consiste na escolha dos representantes mediante eleições periódicas. Para que haja escolha informada, os cidadãos precisam ter acesso a toda sorte de informação, cabendo a eles o julgamento sobre a veracidade do que se discute no espaço público pelas pessoas públicas. Assim, atitudes paternalistas que solapam a autonomia do cidadão são antidemocráticas. Se o poder emana do povo, não há submissão dele perante o Estado.
Edmund S. Morgan, em “Inventing the People”, explica o advento do governo representativo, que ocorreu na Inglaterra do século XVII. Com o esboroamento da teoria do direito divino dos reis, o Parlamento precisava afirmar sua autoridade. Então, uma nova ideologia, um novo conjunto de ficções precisava ser criado. A ideia de representação, que já existia na Inglaterra com contornos diferentes, ganha novo significado ante a proeminência do Parlamento.
A explicação divina para a legitimação da autoridade não saiu da equação: agora, Deus, no lugar de conferir autoridade ao rei, conferiu-a ao povo. E era o povo que delegava poder ao Parlamento para atuar em seu nome. Assim, a conformidade da atuação do Parlamento à vontade de Deus passou a ser controlada pela população. Rei e Parlamento estavam submetidos ao escrutínio e à vontade popular. Nas democracias de massa, esse controle só é eficaz com liberdade expressão e de informação.
John Stuart Mill sustenta que a livre discussão é o meio mais adequado de se adquirir conhecimento. A liberdade, título de seu livro, só tem lugar onde vigora o debate livre e igual. Nas sociedades em que esses pressupostos estão ausentes – as sociedades atrasadas – o governo despótico é legítimo como instrumento de aperfeiçoamento dos indivíduos, tal qual um pai que cuida do filho. Nessas circunstâncias, a população deve obediência cega ao governante. Por outro lado, Mill reconhece o risco de um governo despótico ao afirmar que somente com sorte encontra-se um Carlos Magno.
A relação entre democracia e conhecimento, todavia, é problemática, como já verificada pelos filósofos antigos. Platão é um dos que apontam os males do regime democrático, que hoje se tornou dogma. Não se pode criticá-lo sem sair impune, a ponto de tiranos se qualificarem como democratas para não perderam popularidade. O próprio Mill sublinha o risco dos dogmas: sem a crítica constante, as razões de defesa que sustentam uma verdade são esquecidas, possibilitando o predomínio de ideias falsas.
A essência do pensamento de Platão é resumida na cena de um filme cujo nome não me recordo. Dois intelectuais conversam em um restaurante. Um deles chama o garçom e lhe faz uma pergunta intricada sobre economia internacional. Pouquíssimos saberiam responder. Sem obter a resposta, a personagem se dá por satisfeita por ter provado a impraticabilidade do regime democrático: o povo é ignorante demais para tomar parte da coisa pública. Daí o governo dos reis filósofos, que têm conhecimento absoluto e estão, por isso, no ápice da hierarquia social concebida por Platão.
Dois remédios existem para minorar essa relação problemática entre conhecimento e democracia: educação universal e pluralidade de fontes. Espera-se, assim, que o cidadão consiga, com algum descortino, entender alguns problemas fundamentais que afetam a nação. Dessa maneira, ele pode escolher o representante que advogue ideias e soluções que entenda pertinentes.
Contudo, mesmo com educação e pluralidade de fontes o problema persiste: ninguém é capaz de absorver todo o estoque de conhecimento existente. A realidade é complexa e mesmo entre especialistas há divergências. Portanto, a compreensão dos assuntos de interesse público passa ao largo de ser plena. É o ônus da democracia, que deve ser sempre aprimorada.
De todo modo, se a escolha dos representantes cabe aos cidadãos, é deles o risco da decisão equivocada. Ou eles são capazes de julgamento e a democracia é possível ou eles não são capazes de julgamento e a democracia é inviável. Nesse último caso, Mill recomenda o governo despótico.
A legislação eleitoral brasileira e as decisões judiciais, em alguns aspectos, tratam o eleitor de forma paternal, desconsiderando sua autonomia. A lei eleitoral permite interferência excessiva do Judiciário nas eleições, especificadamente na remoção de conteúdos, em desatenção à livre e igual discussão e em substituição ao julgamento dos eleitores.
Há um avanço paulatino do Judiciário como árbitro da verdade em minudencias e questiúnculas, o que prejudica o debate público. Já testemunhei a proibição de propaganda eleitoral porque no jingle de um candidato afirmava-se que o seu oponente não possuía propostas. A decisão judicial substituiu o eleitorado em sua inteligência. Nenhum judiciário do mundo está equipado para ser o bastião da verdade, como já reconheceu o STF em julgamento sobre a liberdade de expressão.
Nos Estados Unidos, uma das justificativas para não se coibir a proliferação de notícias falsas sobre pessoas públicas é a de que elas têm os meios para se defender publicamente, de modo que os cidadãos podem ouvir outra versão. Esses meios não estão disponíveis à pessoa privada. Ela, quando tem sua honra atacada, merece reparação via tutela jurídica.
Nas eleições estadunidenses de 2016, por exemplo, circularam livremente notícias segundo as quais Hillary Clinton estava envolvida em uma rede de pedofilia e de tráfico sexual de menores. Essas notícias foram desmentidas diversas vezes.
É verdade que os Estados Unidos estão no extremo espectro da liberdade de expressão. Talvez apenas informações falsas gravíssimas sobre um candidato merecesse alguma intervenção do Judiciário, mas não é o que acontece. Para os demais casos, o candidato atacado pode defender-se nos meios a que tem acesso. Esse contraponto é importante para, se for o caso, também ser rebatido, e assim sucessivamente. O controle excessivo do Judiciário suprime a exposição pública e recíproca dos candidatos perante o eleitorado.
A interferência excessiva do Judiciário implica risco maior de remoção de notícias supostamente falsas quando elas são verdadeiras. E nem sempre o discurso político, se traz inverdades, é inteiramente falso. Mill sustenta que a supressão de discursos parcialmente falsos é prejudicial, pois se impede a difusão da parcela de verdade. Além do que a maioria dos discursos políticos é opinativa e opiniões não estão sujeitas ao critério empírico de verdade.
Há um excesso de judicialização durante as eleições e o tempo para proferir-se uma decisão judicial é exíguo. O juiz eleitoral não tem condições de relacionar, racionalmente, a profusão de conceitos elusivos sobre propaganda com os fatos da causa. Conceitos abertos e indefinidos dão margem a decisões idiossincráticas. Como consequência, as decisões, em grande parte, não passam de fundamentações genéricas de incidência ou não da norma ao caso concreto.
A legislação criou o juiz eleitoral que tudo sabe, apesar de suas inúmeras limitações. Ele julga a verdade e a falsidade do discurso político, ao tempo que tolhe dos eleitores essa oportunidade. Não se pode estar acima do cidadão. Por seus elementos elitistas, o modelo atual se aproxima do ideal platônico.