23 novembro 2024
Lucas Faillace Castelo Branco é advogado, mestre em Direito (LLM) pela King’s College London (KCL), Universidade de Londres, e mestre em Contabilidade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É ainda especialista em direito tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) e em Direito empresarial (LLM) pela FGV-Rio. É diretor financeiro do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) e sócio de Castelo e Dourado Advogados.
Todo autor sério que trata da liberdade de expressão admite que a proteção desse valor implica aceitar algum dano decorrente de seu exercício. A liberdade de expressão só é invocada quando há atos expressivos controversos que geram incômodo.
Antes de ser uma questão legal, a liberdade de expressão é um problema filosófico. Alegados simpatizantes da liberdade de expressão tratam de defendê-la ressalvando que o limite de seu exercício legítimo é a lei. Essa fórmula aparentemente sedutora – e obviamente simplista – não paira em pé.
O ponto crucial é saber-se se a lei (incluindo-se as decisões judiciais) não suprime substancialmente o exercício da liberdade de expressão, tornando-a mero conceito vazio sem correspondência na realidade. Afinal de contas, até King Jong Un poderia dizer que na Coréia do Norte existe liberdade de expressão exercida nos limites da lei.
Há que se examinar a efetiva proteção da liberdade de expressão por uma sociedade, pois a análise formalista da lei não é critério decisivo. Isso também se aplica aos limites de tolerância aos danos gerados por atos expressivos. A fundamentação dessa análise são conceitos político-filosóficos arraigados no pensamento ocidental.
Thomas Scanlon, filósofo estadunidense, considera a liberdade de expressão um valor em si mesmo, ao contrário de John Stuart Mill, que a defende por motivos utilitários. Tendo valor intrínseco, a proteção da liberdade de expressão precisa independer dos resultados advindos de seu exercício.
Scanlon sustenta sua teoria na autonomia do indivíduo. O governo legítimo, defende o autor, é aquele cuja autoridade é reconhecida pelos cidadãos enquanto agentes iguais, autônomos e racionais. Na qualidade de indivíduos autônomos, os cidadãos são soberanos para decidir no que acreditar e para sopesar as razões conflitantes que servem de base para a ação.
Isso não quer dizer que o filósofo defenda que a liberdade de expressão seja irrestrita. Quando causam dano objetivo, é legitima a proibição de certos discursos—casos que impliquem dano físico direto ou prejudiquem uma pessoa por colocá-la em situação de ridículo público.
Por outro lado, há atos expressivos danosos que não devem ser proibidos. São eles os que possam inspirar (i) a formação de crença falsa e (ii) ações praticadas porque o indivíduo foi levado a acreditar ou a aumentar sua crença em que elas valiam a pena ser praticadas.
A proibição violaria a autonomia do indivíduo, como a violaria também a proibição de discursos que advoguem ações ilegais, já que isso privaria os cidadãos de ponderar as razões para um julgamento independente sobre se a lei deve ser obedecida. Advogar ações ilegais é diferente de praticar ações ilegais ou conferirem-se meios para a prática de ações ilegais.
O que Thomas Scanlon defende, a partir do argumento da autonomia, é a incongruência do paternalismo estatal diante da racionalidade dos cidadãos. A interferência do Estado só é legítima em situações danosas especiais.
Assim, a soberania dos cidadãos autônomos a respeito do que decidem acreditar e de como agir em face da convicção formada é o motivo pelo qual a circulação de informações falsas e a potencial prática de ações com base nelas não são razões suficientes para a censura.
É nessa capacidade racional de escolha de seus cidadãos, considerados iguais para esse fim, que os regimes democráticos são ancorados. Ao se eliminarem as ideias fundamentais que sustentam a democracia, ela, a democracia, não pode se sustentar. Como diz um amigo, não dá para se retirar o prego e esperar que o quadro permaneça pendurado.