23 novembro 2024
Lucas Faillace Castelo Branco é advogado, mestre em Direito (LLM) pela King’s College London (KCL), Universidade de Londres, e mestre em Contabilidade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É ainda especialista em direito tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) e em Direito empresarial (LLM) pela FGV-Rio. É diretor financeiro do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) e sócio de Castelo e Dourado Advogados.
Recentemente, dois cidadãos figuraram no noticiário confrontando outros cidadãos, agentes públicos, que exerciam o poder de polícia no contexto de medidas profiláticas em relação à pandemia.
O primeiro deles, curiosamente negando-se a si próprio a condição de cidadão, como se em uma democracia houvesse status superior, deu carteirada de engenheiro civil. Que a carteirada é recurso usual não é novidade. A novidade, pelo menos para mim, foi alguém valer-se do título de bacharel em engenharia.
Se fosse um bacharel em direito, a novidade não seria tanta assim. Este poderia reivindicar o seu superior saber da lei como forma de tripudiar do agente aparentemente sem curso superior. Talvez um médico também não o fosse, já que, ao menos no caso específico, ele poderia mostrar sua superioridade em saúde como forma de menosprezar o agente que cumpria ridícula determinação.
Mas um bacharel em engenharia? Logo no Brasil, onde há tantos bacharéis! Como ficam, então, os mestres e doutores, cada vez mais abundantes, nessa escala hierárquica? E os pós-doutores, que também crescem em número a cada dia?
(O Brasil não é para amadores, como dito pelo maestro Tom Jobim, e ficou-se sabendo, mais tarde, que o agente humilhado era detentor de um doutorado. Até hoje não se sabe qual seria o efeito de tal informação na escala de valores concebida pelo autodeclarado não cidadão engenheiro.)
O segundo caso ocorreu com um desembargador de São Paulo, já reincidente em malcriação, para ser eufemístico. Valendo-se de sua posição profissional e de alguma amizade, além de (suposto) saber jurídico, confrontou o agente que lhe aplicou multa por não usar a máscara em local público.
Por muito menos, na Inglaterra, quatro juízes perderam o cargo, em 2015, ao se descobrir que eles haviam entrado em “sites” pornográficos por meio de suas contas de acesso oficiais, o que não era especificamente ilegal, mas suficiente para minar a confiança do público no poder judiciário. A revelação disso foi um escândalo e motivo de choque para os cidadãos.
Evidente que no Brasil a lei vale apenas para os outros, ou não se aplica em face daquele de quem o cumprimento é exigido, se quem exige encontra-se em posição social considerada inferior. Coisas da mentalidade brasileira, é claro. Aqui, os valores democráticos só se encontram mesmo no papel, apesar de seus inúmeros e ferrenhos defensores.
Se tudo não fosse surpreendente, chamou-me também a atenção a quantidade de indignados – muitos suspeitíssimos – com as situações acima (e as situações são, de fato, de justíssimas indignações). Seria o mesmo sintoma daquela constatação de país racista onde ninguém é racista?
Há, claro, formas mais sutis de autoritarismo e de se exercerem privilégios – e de sinalizar o poder – sem que se tenha que humilhar alguém tão ostensivamente. O Brasil é um país onde as relações pessoais prevalecem rotineiramente no trato da coisa pública, quando deveria imperar o impessoalismo característico de um sistema em que as leis valem.
É nesse contexto que surgem os cidadãos de primeira classe, que, curiosamente, repudiam o tratamento de cidadão. Os exemplos acima são apenas os sintomas mais grotescos do que pulula em nosso cotidiano: a busca diuturna por toda sorte de privilégios e de poder como laivo de distinção e superioridade, porque a lei, por si só, não é garantia de nada (ou de muito pouco).
As aberrações chegam a tanto que, tristemente, mesmo para se exercerem direitos legítimos, torna-se necessário, por vezes, recorrer-se a “pessoas de influência”. E, então, o cidadão comum (expressão curiosa, mas que faz sentido no Brasil), no lugar de contar com a lei, passa a depender de pessoas. Um país assim é digno de ser considerado uma democracia?
Pormos o dedo em riste é fácil; difícil mesmo é exercermos a autocrítica e identificarmos a nossa parcela de culpa nesse estado de coisas.