23 novembro 2024
Lucas Faillace Castelo Branco é advogado, mestre em Direito (LLM) pela King’s College London (KCL), Universidade de Londres, e mestre em Contabilidade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É ainda especialista em direito tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) e em Direito empresarial (LLM) pela FGV-Rio. É diretor financeiro do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) e sócio de Castelo e Dourado Advogados.
Algumas pessoas acreditam que só há democracia desde que as informações que circulam reflitam a verdade. Assim, notícias falsas deveriam ser removidas do cenário público e seu difusor, uma vez identificado, punido.
Ninguém duvida que informações falsas sejam nocivas para a tomada de decisão. Por outro lado, ninguém duvida que não pode haver democracia sem liberdade de expressão. Sendo a circulação de notícias falsas nociva para a tomada de decisão coletiva e, assim, para a democracia, poder-se-ia concluir que a remoção de notícias falsas do espaço público seria a melhor solução. Desse modo, a liberdade de expressão estaria garantida contanto que a divulgação de notícias espelhe a verdade.
Contudo, vasta filosofia sobre o tema acentua os males dessa solução, assim como as evidências empíricas da História. A questão central da censura oficial é que caberá a alguns poucos “iluminados”, em substituição à coletividade, decidir o que é verdadeiro e o que é falso. E, como se sabe, as pessoas por vezes têm interesses dissociados da busca da verdade e, por conta disso, um julgamento que seria criterioso torna-se viciado. O argumento da suspeita do governo põe em xeque a censura por qualquer autoridade pública, que é naturalmente suspeita para a tarefa.
Vale o princípio do mal maior mal menor. Se a veiculação de notícias falsas é um mal, pior ainda é conferir-se poder a qualquer indivíduo ou a grupo de indivíduos para essa função. O censor tenderá a eliminar notícias que lhes são inconvenientes e que não promovam seus interesses ou os de seu grupo. Ao fim e ao cabo, o resultado esperado é o exercício abusivo do poder, a supressão paulatina da liberdade de expressão em nome da verdade e do bem e, por fim, o esboroamento da democracia.
A plena liberdade de expressão pressupõe a tolerância de notícias falsas, especialmente as que têm conteúdo de interesse público. Notícias falsas geram debate público que potencialmente trará esclarecimentos ao público. A censura traz desconfianças e mina o debate e o confronto de versões. O melhor remédio para informações falsas é mais discurso.
Isso é perfeitamente compreendido pelos americanos. Eis um exemplo ilustrativo recente: em um dos processos em que Donald Trump é acusado de conspiração, a própria promotoria afirma, com todas as letras, que o ex-presidente, como todo cidadão americano, tem o direito de fazer alegações falsas sobre fraude nas eleições e de sustentar que ele foi o vencedor, além de poder tomar medidas legais contestando o resultado das urnas. O processo judicial contra ele não trata de meras consequências legais de palavras proferidas.
Há inúmeros outros argumentos em favor da liberdade de expressão, como a da autonomia do indivíduo. Nenhuma autoridade pode substituir o cidadão na formação de suas convicções. O indivíduo é soberano sobre o que decide acreditar e para pautar-se na crença formada para fins de ação.
Qualquer autoridade investida de poderes para retirar informações falsas do cenário público termina por subverter a lógica democrática. Presume-se sua superioridade frente aos demais cidadãos, na suposição de que devam ser tutelados. Essa relação paternalista é incompatível com o princípio da igualdade e é característica de governos autocráticos.
Se uma autoridade pública tem a capacidade de avaliar o que é verdadeiro e o que é falso e a igualdade é um valor a ser perseguido em uma democracia, todo e qualquer cidadão também é igualmente capaz de escrutinizar informações e, por isso, deve ser exposto a elas para formar opinião independente. O corpo de censores iluminados e os cidadãos estão sujeitos à mesma condição: a falibilidade humana. A própria ideia de representação envolve o requisito do julgamento independente pelos representados, não sua tutela. Ao menos essa é a base na qual se fundam as democracias modernas. Suprimidos os alicerces, erode-se a democracia.
Portanto, em uma democracia, a coletividade é responsável pelos erros na tomada de decisões políticas. Os cidadãos adultos têm de ter a liberdade para formar crenças, mesmo as equivocadas. É apenas nesse regime que se permite a correção, pela própria sociedade, dos erros cometidos. Já nos regimes autocráticos, a verdade, ditada de cima para baixo, é uma só. Nesse modelo, inculca-se nas pessoas uma visão ingênua do que seja a verdade, até porque o soberano ou a elite dominante, claro, jamais erra.
Há, evidentemente, circunstâncias em que o exercício da liberdade de expressão ultrapassa certos limites. Nenhum teórico sério do tema advoga que esse valor seja absoluto. Entretanto, a mera falsidade de informação que tenha o potencial de promover um debate de ideias de interesse público, seja sobre pessoas públicas, seja sobre instituições, não deveria merecer intervenção do direito, muito menos intervenção drástica.
As justificativas político-filosóficas da liberdade de expressão servem de termómetro para análise do grau de proteção desse valor e da própria democracia em um sistema legal. O orador grego Demóstenes sentia orgulho de os atenienses poderem criticar sua própria constituição. A possibilidade de crítica ao próprio sistema político vigente constitui o grande teste de uma democracia.