Foto: Alan Santos/PR/Arquivo
O tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, ajudante de ordem do ex-presidente Jair Bolsonaro 07 de julho de 2023 | 13:00

Polêmica do artigo 142 levou militares amigos de Mauro Cid a consultar Ives Gandra sobre golpe

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Às 19h36, de 27 de abril de 2017, o então major Fabiano da Silva Carvalho, aluno do 2.º ano da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), mandou um e-mail para o professor Ives Gandra Martins. Depois de se apresentar, o oficial pediu ao jurista um parecer que “elucidasse” o que, para as Forças Armadas, caracterizaria o dever de “garantia dos poderes constitucionais”.

A manifestação de Gandra – disse o oficial – seria “de extrema relevância” na elaboração de um manual de segurança integrada do Exército. “A garantia dos poderes constitucionais é uma missão imposta para as Forças Armadas e prevista no art. 142 CF (Constituição Federal), assim como a defesa da Pátria e a garantia da lei e da ordem”, escreveu o major, que anexou ainda nove perguntas ao professor.

Seis anos depois, o trabalho dos alunos da Eceme foi encontrado pela Polícia Federal no telefone celular do tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, um dos integrantes do grupo da escola da qual participava o então major Fabiano. O documento se tornou um dos indícios de que Cid e seus companheiros buscavam argumentos para justificar um golpe de Estado e impedir a posse do petista Luiz Inácio Lula da Silva. Na próxima semana, o tenente-coronel deve ser questionado no Congresso sobre o documento na CPMI dos ataques do dia 8 de janeiro.

A reportagem procurou refazer a discussão sobre o artigo na Assembleia Nacional Constituinte, para recuperar as intenções e desígnios dos constituintes, bem como para reconstruir a ação dos alunos da Eceme, no biênio 2016-2017. “Desde agosto, quando falavam que havia risco de golpe, eu respondi que ele era zero sobre zero. E escrevi um artigo dizendo isso. O artigo 142 é para nunca ser usado e depende sempre de um Poder pedir”, afirmou Ives Gandra Martins.

O professor contou que leciona há 34 anos para os futuros generais do Exército. “Participei de banca de mestrado na escola e, se algum aluno me telefonasse, eu atendia. Esse major não foi meu aluno, mas ele me pediu que eu respondesse a algumas questões. Eu nunca deixei de responder para qualquer aluno, ainda que não fosse meu aluno. Tenho esse hábito como professor universitário”.

O e-mail de Gandra foi enviado ao major no dia 3 de maio de 2017. Ali estava a segunda pergunta enviada pelo major. Ela era a seguinte: O emprego das Forças Armadas na garantia dos poderes constitucionais pode ocorrer em situação de normalidade ou apenas em estado de exceção? A resposta de Gandra, que suscitou interpretações polêmicas, nos anos seguintes, foi: “Pode ocorrer em situação de normalidade se, no conflito entre Poderes, um deles apelar para as Forças Armadas, em não havendo outra solução”.

Intervenção é discutida há anos

Era justamente esse tipo de conflito que militares investigados pela PF vislumbravam existir entre o presidente Jair Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 2022. Mas a discussão sobre o papel das Forças em uma crise entre os Poderes nascera muito antes, como prova não só a troca de e-mails entre o major e o jurista, mas também manifestações públicas de generais.

Em outubro de 2017, um deles, o general Luiz Eduardo Rocha Paiva – já na reserva, ele mantinha relações com o comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas – escreveu um artigo que começava afirmando que, na Constituição, estava claro “não haver nenhum dispositivo legal” que autorizasse “o emprego ou a intervenção das Forças Armadas por iniciativa própria”. Mas, em seguinda, o militar que comandara a Eceme de 2004 a 2006 dizia: “A intervenção militar será legítima e justificável, mesmo sem amparo legal, caso o agravamento da crise política, econômica, social e moral resulte na falência dos Poderes da União”.

Em meio à Operação Lava Jato, Rocha Paiva concluía que “o Executivo e o Legislativo, profundamente desacreditados pelo envolvimento de altos escalões em inimagináveis escândalos de corrupção, perderam a credibilidade para governar e legislar”. E previa que o agravamento do cenário, em médio prazo, “poderá levar as Forças Armadas a tomarem atitudes indesejadas, mas pleiteadas por significativa parcela da população”.

A Polícia Federal não conseguiu detectar se os integrantes do grupo de estudos do então major Fabiano procuraram outros juristas ou militares para tratar do tema abordado por Gandra Martins e pelo general Rocha Paiva. Ou se pesquisaram os anais da Assembleia Nacional Constituinte para reconstruir os debates que levaram à formulação da redação atual do artigo 142 da Constituição.

Esse foi um trabalho feito pelo cientista político e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Antonio Sérgio Carvalho Rocha, que coordena o Projeto Memória Constituinte. Ele reúne pesquisadores de outras sete instituições do Rio e São Paulo – o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec) e as instituições de ensino USP, Unicamp, Uerj, UFSCar, Unesp e Mackenzie.

Desde 2007, o grupo entrevistou 152 políticos, juristas e atores da sociedade para explicar a Constituição de 1988. Entre eles está o então ministro do Exército, o general Leônidas Pires Gonçalves, falecido em 2015. Leônidas disse aos pesquisadores que o Exército conseguiu tudo o que queria na Constituinte, aprovando 26 pontos que considerava importantes na Assembleia.

“Não se pode dissociar a experiência brasileira do regime que veio antes. Na literatura comparada, existem três exemplos de transição. O primeiro é o da Espanha (Pacto de Moncloa, nos anos 1970), que consegue não só uma transição exitosa do franquismo para a democracia, mas também submeter os militares ao poder civil. Trata-se de caso paradigmático. Na Argentina (a redemocratização após a Guerra das Malvinas, em 1982), houve um caso intermediário e, no Brasil, houve um fiasco quase total de submeter os militares ao poder civil”, disse o professor Carvalho Rocha. O primeiro dos 11 volumes da pesquisa será publicado neste ano.

Carvalho Rocha sabe que a polêmica sobre o artigo 142, o que define o papel das Forças Armadas, não foi inventada pelo coronel Cid e seus amigos. Desde o começo da Constituinte, esse tema esteve entre os que mais suscitaram debates na Assembleia. No final de 1987, durante as sessões da comissão de sistematização, havia três posições: a do general Leônidas, a do senador Fernando Henrique Cardoso (PMDB) e a do deputado federal José Genoino (PT).

Conta Carvalho Rocha que a direita era favorável a dois pontos defendidos por Leônidas: a de que as Forças Armadas destinavam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, só por iniciativa do Executivo, da lei e da ordem. A esquerda queria a exclusão da expressão “lei e ordem” e dar aos outros Poderes a capacidade de convocar os militares. Coube a FHC a solução conciliatória. A expressão “lei e ordem” foi mantida, mas a iniciativa para a convocação das Forças foi estendida ao Legislativo e ao Judiciário.

Genoino temia que a expressão “lei e ordem” servisse no futuro para o que o constitucionalista Oscar Vilhena chama de “interpretação fraudulenta da Constituição”, a de que aos militares teria sido conferido uma espécie de Poder Moderador entre os Poderes da República, em caso de conflito entre os Poderes. Daí porque desejava circunscrever a ação constituicional das Forças à defesa da Pátria, contra inimigos externos.

Conciliação

“O dissenso entre Genoino e Fernando Henrique não era um dissenso entre golpistas. Era de vítimas da ditadura, os dois”, afirmou o desembargador aposentado Walter Maierovitch. É o que ficou registrado nos anais da sessão de 6 de novembro de 1987, na comissão de sistematização, quando a emenda do petista foi derrotada, prevalecendo o texto defendido por Fernando Henrique.

Para Vilhena, diretor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, para entender a redação final do artigo é preciso lembrar que a Constituinte é parte do processo de transição entre a ditadura militar e a Nova República. “Isso significa que os militares ainda tinham muita força. O que vinha do Palácio do Planalto por intermédio do ministro Leônidas não era algo a ser descartado.” Para ele, a proposta de Fernando Henrique diferenciava o texto das Constituições anteriores, pois retirava dos militares por completo a autonomia para qualquer tipo de conduta dentro do mundo civil.

“Ele (o militar) só pode agir para garantir. Não posso usar os militares para destituir a Justiça Eleitoral. Só para garantir a integridade do TSE, sem ofender a ordem constitucional. E ele não é o intérprete do que é a ordem constitucional. O texto não dá espaço para que o militar decida quando e por que intervir. A redação proposta pelo Genoino seria melhor, mas a concessão que o Fernando Henrique propôs ao Leônidas deixa claro que isso só pode acontecer se há convocação de um dos Poderes e para a defesa da Constituição”, disse Vilhena.

Toda essa discussão se baseava no fato de o Brasil republicano registrar um histórico de intervenções militares que tinham como origem a ideia de que os militares podiam interpretar quando deviam ou não obediência ao poder civil e autonomia para resolver conflitos políticos. Fernando Henrique sabia disso. Gandra Martins concorda com a ideia de que o futuro presidente da República conciliou as propostas da esquerda e da direita

“Foi o Fernando que contrariou no Genoino, que queria uma outra redação”, disse Gandra à reportagem. Nesta semana, ele voltou a conversar com o relator da constituinte, Bernardo Cabral, para recuperar parte do ambiente da Assembleia e da discussão sobre o título 5.º da Constituição, denominado como Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, no qual estão definidos o estado de sítio, o estado de defesa e o papel das Forças Armadas e das forças policiais.

“Era um título que foi colocado de uma forma para nunca ser utilizado, o que chamo de regime constitucional das crises. O estado de sítio, por exemplo, citado naquele decreto estapafúrdio, tem de ser mandado para o Congresso e, se em 24 horas, ele não aprovar por maioria absoluta, deixa de existir.” Gandra se refere ao documento apreendido pela PF na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, um decreto de estado de defesa dentro do TSE para cancelar as eleições.

Para Maierovitch, além das amarras constitucionais e das intenções da maioria da Constituinte, a história não sustenta a interpretação de que o artigo 142 concederia o poder moderador às Forças Armadas. “O Benjant Constant de Rebecque (pensador francês) entendia que, nas monarquias constitucionais, o poder moderador era do monarca, o que foi importado pelo Brasil no Império. Historicamente, ele aplica-se somente às monarquias e ele é do imperador. Jamais se falou em Forças Armadas. Jamais o autor da doutrina do poder moderador chegou a tal absurdo”.

Ele aponta ainda não haver dúvida de que a convocação das Forças Armadas estará sempre submetida à apreciação do Judiciário. “Está na Constituição, como garantia, que nenhuma violação a direito será subtraída à apreciação do Poder Judiciário. Com o devido respeito, só mentes tomadas por uma interpretação gramatical absurda podem chegar à conclusão de que o Poder Moderador é das Forças Armadas. Esse tipo de distorção só interessa a golpistas”.

Além da minuta do golpe apreendida com o ex-ministro Torres e das respostas de Gandra Martins para o estudo do major Fabiano, a PF aprendeu ainda com o tenente-coronel Cid uma segunda “minuta do golpe”. O documento seria um modelo de decreto para a convocação das Forças Armadas por meio da decretação de operação de garantia da lei e da ordem com o objetivo de reverter o resultado da eleição de 2022.

Cabem agora ao Congresso, à PF e ao STF verificar até onde o mero debate acadêmico dos colegas de Cid passou do limite do grupo de estudo para se tornar um instrumento para legitimar os atos dos que atacaram a Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro. Ou seja, se Cid reuniu esses documentos com o objetivo de obter suporte jurídico e legal à execução de um golpe de Estado.

Marcelo Godoy/Estadão
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