15 novembro 2024
A escassez de mão de obra no mercado de trabalho tem acelerado as contratações formais de estrangeiros no Brasil. De janeiro a agosto deste ano, entre admissões e demissões, o saldo de imigrantes trabalhando no País cresceu 53% em relação ao mesmo período de 2023, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
O crescimento tem sido puxado sobretudo pela contratação de venezuelanos e cubanos, que encontram oportunidades principalmente nas regiões Sul e Sudeste, onde a oferta de vagas é ampla e os índices de desemprego estão abaixo da média nacional. No trimestre terminado em agosto, a taxa de desemprego no Brasil foi de 6,6%, o menor resultado para o período do ano em toda a série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), iniciada em 2012 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O estoque total de estrangeiros com carteira assinada no mês passado atingiu 321.196 trabalhadores. É a maior marca da série iniciada em janeiro de 2020 pela nova metodologia do Caged, aponta um levantamento feito, a pedido do jornal O Estado de São Paulo pela LCA Consultores. O estudo considerou dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), atualizados pelo saldo de contratações mensais do Caged.
Além do estoque, a taxa de crescimento anual de estrangeiros empregados mês a mês também foi recorde em agosto deste ano: avançou 27,6% ante o mesmo mês de 2023. Além disso, o resultado ficou quase dez pontos acima do aumento registrado em agosto de 2023 na comparação com igual período de 2022 (17,9%).
Em termos absolutos, o número de estrangeiros empregados formalmente ainda é pequeno e insuficiente para suprir a falta de mão de obra qualificada. Os trabalhadores estrangeiros representam cerca de 0,6% do total de empregados formais, que somam 47 milhões de pessoas. De toda forma, o crescimento tanto do estoque como do saldo de contratações neste ano reflete a situação de aperto na oferta de trabalhadores.
“O mercado de trabalho aquecido é um motivo pelo qual tem sido registrado esse crescimento”, afirma o economista da LCA Consultores, Bruno Imaizumi, responsável pelo levantamento. Ele pondera, no entanto, que o número de estrangeiros ocupados pode ser maior, porque muitos estão trabalhando informalmente. “Agora conseguiram carteira (assinada) num momento melhor do mercado de trabalho”, observa.
Na RHBrasil, por exemplo, uma das cinco maiores consultorias de recrutamento e seleção de vagas operacionais, técnicas e administrativas do País, que tem como clientes gigantes nacionais do varejo e multinacionais da indústria, o número de estrangeiros contratados mais que dobrou neste ano.
Entre janeiro e julho, a consultoria fechou 907 contratos de trabalho com estrangeiros, um volume 123% maior em relação ao mesmo período de 2023. Quase 90% são de venezuelanos, mas há também angolanos, argentinos e haitianos, muitos são refugiados. Mais de 90% foram contratados para trabalhar na indústria em funções operacionais.
A razão para o forte aumento das contratações de estrangeiros, segundo o gerente de recrutamento e seleção da consultoria, Joanir Schadeck, é o crescimento da oferta de vagas, principalmente no Sul e no Sudeste. “No Sul, está virando pleno emprego: a taxa de desemprego no Brasil estava em 6,9% no segundo trimestre e em Santa Catarina era de 3,2%″, compara.
Dados do Caged mostram que a região Sul liderou a absorção líquida de trabalhadores (65,1%) entre janeiro e agosto deste ano, seguida pelo Sudeste (18,7%) e o Centro-Oeste (10,7%). A indústria puxa fila entre os setores, com 40,6% dos empregos para estrangeiros, especialmente o setor de alimentação.
‘Fome com a vontade comer’
A BRF, por exemplo, gigante de proteína animal, com indústrias no Sul e no Centro-Oeste, tem sentido na prática os efeitos da escassez de mão de obra nessas regiões, segundo Alessandro Bonorino, vice-presidente de Gente, Gestão e Transformação.
Desde 2019, a companhia tem um programa voltado para contratar imigrantes e as admissões têm sido crescentes. Atualmente, são 8,3 mil imigrantes contratados num total de 100 mil funcionários da empresa. A maior parte está alocada nas unidades de Chapecó (SC), Concórdia (SC), Capinzal (SC), Toledo (PR) e Lucas do Rio Verde (MT).
Bonorino diz que só vê vantagens ao contratar esses trabalhadores. “É a fome com a vontade de comer”, compara ele. A empresa oferece as oportunidades e, como esses imigrantes estão querendo recomeçar a vida, o nível de engajamento, a disposição para vestir a camisa da empresa, é elevado. O engajamento dos venezuelanos é um dos mais altos na companhia, supera 90%, diz o executivo.
Asdrubal Jose Chanchamire Hurtado, de 32 anos, casado e com um filho, é um dos 5,4 mil venezuelanos empregados na BRF. Desde março ele trabalha na linha de produção de aves da unidade de Chapecó (SC). Com formação universitária em Administração de Empresas, ele exerceu a profissão em seu país. Também por cinco anos foi sargento da guarda nacional venezuelana.
Desde que saiu do país em 2019, trabalhou em pizzaria e na construção civil em Roraima, mas de forma informal. Teve pela primeira vez a carteira assinada quando foi para Chapecó (SC) há três anos. Inicialmente, conseguiu emprego em um frigorífico. Depois migrou para construção civil, como servente de obra. Foi para a BRF por causa do ganho salarial, de cerca de 40% em relação ao emprego anterior, e dos benefícios.
“No futuro, pretendo retomar a minha profissão no Brasil e crescer”, diz Hurtado. Ele vê espaço para ir para área administrativa em uma grande empresa como a BRF.
Essa também é a meta de outra venezuelana, Liliana Gomez, de 38 anos, solteira e sem filhos. Formada em Administração de Empresas, ela trabalhou na área financeira na Venezuela até migrar para o Brasil em 2019. Aqui, enfrentou dificuldades e chegou a viver na rua por cinco meses em Roraima. Posteriormente, conseguiu abrigo e foi selecionada por uma empresa para trabalhar em São Paulo. Desde então, passou por quatro empregos no setor alimentício, atuando em padarias e docerias.
Faz seis meses que Liliana pediu demissão da última padaria. Encontrou uma vaga com salário melhor, para ser balconista, também de padaria, mas no supermercado Negreiros, uma pequena rede com 10 lojas na zona leste de São Paulo.
Com o salário de R$ 1.882, fruto da jornada diária que começa às 7h00 e vai até às 15h20, com folga em um dia na semana e em um domingo, Liliana paga aluguel e manda dinheiro para a família que ficou em seu país e está em situação pior do que a sua.
“Quero melhorar na carreira, mas tudo tem o seu tempo”, diz a venezuelana. No futuro, sonha em trabalhar na área administrativa da rede, fazer balanço e a contabilidade da empresa, área onde atuava em seu país.
Ana Paula Abou Roujaili, diretora de Recursos Humanos e Operações do supermercado Negreiros, conta que no momento tem 16 estrangeiros trabalhando na empresa e o programa de refugiados está em funcionamento há cerca de 14 anos.
“Sempre busquei tê-los como trabalho social”, diz ela, ressaltando que a contratação desses trabalhadores não está ligada à escassez de mão de obra, embora hoje ela avalia que haja menos oferta de trabalhadores em geral. A executiva acrescenta que a maioria dos estrangeiros busca uma oportunidade melhor do que em seu país de origem, agarra a chance e quer crescer.
Condições de trabalho
Já para o para o presidente do Sindicato dos Comerciários de São Paulo e presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT), Ricardo Patah, o problema atual do mercado de trabalho é o baixo salário pago pelas empresas do comércio. A média é de R$ 1.850 por 44 horas semanais. “Tem de trabalhar domingo, feriado e o jovem não quer isso”, diz.
O dirigente sindical observa que muitas vezes os refugiados se sujeitam a essas condições de trabalho, como ocorre em outros países, onde determinadas atividades são exercidas pelos imigrantes. “Tem empresas contratando refugiados ou imigrantes porque não conseguem mão de obra”, afirma Patah. Com o desemprego em níveis baixos, os brasileiros ficam numa posição melhor para escolher as vagas, argumenta.
A qualificação dos imigrantes como Liliana e Huerta para desempenhar funções que muitas vezes estão aquém do seu potencial é uma situação “normal”, segundo o presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Porto Alegre (RS) e secretário Nacional da Construção da UGT, Gelson Santana.
Ele argumenta que geralmente trabalhadores qualificados e com uma condição melhor aos demais são aqueles que têm possibilidade de migrar. E, chegando no Brasil, acabam se submetendo a diversos tipos de trabalho para sobreviver. “Tem professoras venezuelanas trabalhando como empregada doméstica e pessoas com curso superior em canteiro de obras, até por causa da revalidação do diploma”.
Dados dos Caged mostram que entre janeiro e agosto deste ano, mais da metade do saldo de admissões de estrangeiros (57%) é de trabalhadores com ensino médio completo.
Rotatividade da construção civil
Depois da indústria (40,6%), dos serviços (29,3%) e do comércio (17,2%), a construção civil aparece com a quarta maior fatia (8,8%) do saldo de estrangeiros contratados este ano até agosto, apontam os dados do Caged.
A construtora Tenda, por exemplo, conta que começou a contratar refugiados na pandemia. Na época, com a crise na Venezuela, o trânsito de imigrantes era intenso. E a construtora enfrentava a alta rotatividade de trabalhadores. “Se contratássemos venezuelanos, causaríamos um impacto social importante, com carteira assinada e geração de renda e, ao mesmo tempo, resolveríamos o problema da instabilidade da mão de obra”, conta Lucas Moura, gerente de Comunicação e Responsabilidade Corporativa da Tenda.
Inicialmente, a construtora testou a contratação de estrangeiros em obras de Goiânia (GO). Constatou que a rotatividade do refugiado estrangeiro era 67% menor comparada a do trabalhador brasileiro na construção civil. “Trabalhamos com um modelo industrial que requer um tempo para a pessoa entender o processo e replicá-lo. O giro de trabalhadores estressa esse sistema”, explica o executivo.
Diante dos bons resultados, a Tenda expandiu as admissões de estrangeiros para outras obras, o que coincide hoje com o momento de escassez de trabalhadores brasileiros no mercado. “Estamos numa fase que todo mundo da empresa vê valor no programa e os próprios refugiados indicam outros refugiados, não tenho mais o trabalho de prospectar”, diz Lucas Moura.
Atualmente 150 estrangeiros trabalham na construtora. Eles representam 8,3% da operação de obra da companhia em todo Brasil. Mais de 90% dos imigrantes são da Angola e da Venezuela, mas há trabalhadores do Congo, Cuba, Haiti, Tanzânia e Guiné-Bissau.
O momento favorável da construção para os estrangeiros se empregar foi sentido por Malamine Mane, conhecido como Maniche, de 44 anos, imigrante da Guiné-Bissau. Pela segunda vez no Brasil, desde 2019, ele trabalha como pedreiro numa empreiteira que presta serviço para construtoras e também faz cursos de pintura e acabamento no Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil de São Paulo (Sintracon-SP).
Salário melhor na construção civil
Até chegar na construção civil, a sua profissão de origem na Guiné-Bissau, Maniche passou pelo comércio, trabalhando como estoquista, e depois foi para metalúrgica, onde operava 18 máquinas.
“Na construção civil é melhor, ganho mais”, conta. Como pedreiro registrado em carteira, seu salário gira em torno de R$ 2,5 mil por mês. Mas com horas extras chega a tirar mais R$ 3 mil. “Trabalho de segunda a sexta-feira, mas se aparece trabalho aos finais de semana, sempre venho trabalhar”.
O pedreiro conta que tem mulher e três filhos que vivem na Guiné-Bissau. Mensalmente, ele tem de bancar as despesas da família que deixou na África e se manter no Brasil. O sonho de Maniche é conseguir juntar dinheiro e comprar uma casa para a família em seu país de origem.
Enquanto esse sonho não se realiza, o pedreiro surfa na onda positiva da construção civil. “Hoje está mais fácil arranjar emprego, tem mais ofertas, mais possibilidades”, afirma.
No Rio Grande Sul, onde parte do Estado foi afetada pelas enchentes de maio, a demanda por trabalhadores para a construção civil nas obras de reconstrução está aquecida. O Estado tem capacidade para absorver 60 mil trabalhadores no setor, calcula o presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção civil de Porto Alegre (RS) e secretário Nacional da Construção da UGT, Gelson Santana. “Estamos precisando de mão de obra e muita”, diz.
Atualmente, dos cerca de 35 a 40 mil trabalhadores empregados na construção civil em Porto Alegre (RS), 5% são estrangeiros, diz o dirigente sindical. “Hoje absorveríamos mais 5 mil trabalhadores, no mínimo”, calcula.
Márcia De Chiara/Estadão