23 novembro 2024
Economista do Ministério da Economia. Mestre em Economia e Doutor em Administração Pública pela UFBA. Autor de diversos trabalhos acadêmicos e científicos, dentre eles o livro Política, Economia e Questões Raciais publicado - A Conjuntura e os Pontos Fora da Curva, 2014 a 2016 (2017) e Dialogando com Celso Furtado - Ensaios Sobre a Questão da Mão de Obra, O Subdesenvolvimento e as Desigualdades Raciais na Formação Econômica do Brasil (2019). Foi Secretário Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) e Diretor-presidente da Companhia de Processamento de Dados do Estado da Bahia (Prodeb), Subsecretário Municipal da Secretaria da Reparação de Salvador (Semur), Pesquisador Visitante do Departamento de Planejamento Urbano da Luskin Escola de Negócios Públicos da Universidade da Califó ;rnia em Los Angeles (UCLA), Professor Visitante do Mestrado em Políticas Públicas, Gestão do Conhecimento e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Professor, Coordenador do Curso de Ciências Econômicas e de Pesquisa e Pós-Graduação do Instituto de Educação Superior Unyahna de Salvador.
A montagem das principais chapas que disputarão a prefeitura de Salvador é a mais pura demonstração de que a maioria da população da cidade conta pouco, muito pouco, quando a discussão sobre o poder político real é para valer.
A ausência de negros ou negras na composição majoritária dos dois principais grupos políticos que disputam o palácio Tomé de Souza é algo que merece questionamentos e reflexão. Não é razoável que após treze anos de governos populares e democráticos, estruturados com discursos de empoderamento racial, 80% do nosso povo se configure como um mero detalhe, nesses momentos.
O debate que levantamos aqui não diz respeito ao recorrente simbolismo que surge quando da necessidade de alguns políticos quererem se mostrar “chegadinho na cor” e à favela, oportunisticamente. Ao contrário, foi muito emblemática a recusa de quase uma dezena de lideranças da comunidade negra em aceitar representar uma espécie de “cota” de última hora para garantir um discurso racializado duvidoso e feito de forma intempestiva.
Para quem duvida disso, basta lembrar que há apenas quatro anos as candidaturas para prefeito de Salvador foram pautadas exatamente naquilo que os mesmos grupos que estão mais uma vez protagonizando a disputa negam. Em 2012, os dois candidatos que foram para o segundo tinham como vices duas mulheres negras e isso foi usado, exaustivamente, como como uma das principais estratégias para angariar votos e dirigir os debates políticos da cidade.
Célia Sacramento, atual vice-prefeita, foi escolhida por ACM Neto como uma espécie de habeas corpus preventivo para possíveis ataques a sua condição de genuíno representante da elite branca soteropolitana que manda e desmanda nas estruturas de poder local, desde sempre, exceto pelo interregno da prefeita Lidice da Mata que pagou um preço altíssimo por ter, além de derrotado ACM, o velho, nas urnas, também o enfrentou durante toda a sua gestão.
Olivia Santana, por sua vez, dotou a candidatura de Nelson Pelegrino de um conteúdo fundamental para dialogar mais diretamente com a maioria da cidade a partir de um lugar jamais visto nas candidaturas de esquerda até então, qual seja, mulher negra, organicamente militante das causas sociais e raciais, legitimada pela sua história na política e na gestão. Fica a pergunta: o que mudou nesses últimos quatro anos a ponto de alterar de forma tão significativa a compreensão daqueles que dirigem a política local, para tudo isso ter deixado de ser importante?
Para as pessoas que trabalharam e deram seus votos àquelas chapas acreditando que finalmente se chegava a um patamar mínimo sustentável de representatividades de raça, gênero, origem social e cultural para a disputa municipal, absolutamente nada! Mas, do ponto de vista daqueles que detém hoje a capacidade de decidir e interferir decisivamente em todo esse processo, escolher um negro ou uma negra para a representação de um projeto político majoritário parece significar uma contingência conjuntural e não uma escolha política realmente consciente. Depreende-se, portanto, que o que houve em 2012 foi um ajuste circunstancial e não um processo evolutivo do aprendizado político.
Para ACM Neto, por exemplo, não restavam muitas alternativas a não ser tentar “inovar” trazendo para sua companheira de chapa uma mulher negra com uma história de vida muito diferente da sua e dos seus. Por isso, com as aparentes condições favoráveis que ele se encontra hoje, essa preocupação vem passando ao largo da escolha de SEU vice uma vez que todos os seus “nubentes” são homens brancos, genuínos representantes de uma espécie de wasp baianiquim. A condição básica que parece ter exigido é que sejam muito diferentes de pessoas como Célia que existem da cidade.
Infelizmente, do lado da principal chapa da centro esquerda de oposição ao prefeito a coisa não ficou muito diferente do ponto de vista racial. O fenótipo europeu está se fazendo presente como elemento simbólico e determinante subjacente. Diferentemente do que ocorre com o grupo do atual prefeito, no entanto, não se questiona o compromisso popular e democrático de Alice Portugal e de Maria Del Carmen, de seus respectivos partidos e de algumas lideranças partidárias que as apoiam e, sem dúvidas, essa ainda é a condição necessária para trazer o debate para a centralidade que a cidade precisa. Contudo, isso não é mais condição suficiente para a determinação da devida representação municipal de um lugar com as características de Salvador.
É inaceitável que os líderes políticos responsáveis por esse processo ainda teimem em colocar à disposição do povo negro da cidade pessoas que deveriam ter ao menos um certo “achegamento” genuíno para representar a nossa Roma Negra. Não dizer isso com toda a tranquilidade e honestidade cidadã e política é negar os oito anos de governo Lula, no Brasil, e os oito anos de governo Wagner, na Bahia, por que foram esses os governos que mais fizeram no sentido de desenhar o maior e mais efetivo arranjo institucional voltado para a promoção da igualdade racial jamais visto no país e no estado. Agora, com a crise de representação que está pairando sobre todos nós, o momento é de acentuar as diferenças entre os projetos políticos e não os diluir em perspectivas pouco radicais.
Não garantir a presença de negros ou negras nas disputas majoritárias em cidades como a nossa, vai de encontro, a tudo que vem sendo construído nas últimas quatro décadas pelo movimento negro e, institucionalmente, pelos governos democráticos mais recentes, uma vez que, todos aqueles que trabalharam para construir marcos institucionais, como os estatutos da igualdade racial nacional, em 2010 e estadual, em 2014, o fizeram para construir uma nova ordem política antirracista e de diversidade sustentável e não artefatos jurídicos apenas “para os negros verem”. Se esse for o jogo, não nos parece haver mais justificativas para o esforço de milhões de negros brasileiros nos apoios a projetos que parecem traduzir as suas demandas, mas quando da dividida política, o negro continua sendo “o primeiro a dançar”.
Esse foi o verdadeiro recado dado pelas negativas de alguns líderes da comunidade negra de Salvador ao serem convidados, na vigésima quinta hora, para perfilar como vice junto a alguns candidatos nessa campanha. O que parece não ter sido entendido é que tais posicionamentos não significavam que, enquanto campo político, estava se dando uma carta branca (sem trocadilhos) para que fossem feitas escolhas sem levar em conta a maioria negra do povo de Salvador.
De resto, para negrada, fica o aprendizado de que o tempo de construção institucional sem as devidas contrapartidas de poder econômico e político já não faz mais nenhum sentido. A hora é de jogar o jogo de forma diferente, pois, só assim, teremos resultados diferentes.