23 novembro 2024
Silvia Cristina, 48, é uma exceção na Câmara dos Deputados. Parlamentar pelo PL de Rondônia, ela integra o restrito grupo de mulheres negras eleitas em 2018 para aquela Casa: 13 entre 513, menos de 3% dos legisladores.
Ela diz não ter dúvidas de que o preconceito cultural contra pessoas negras afeta não só os candidatos mas também os próprios congressistas.
“Para você ter uma ideia, já fui barrada na Câmara, mesmo estando com o ‘bottom’, que é o que nos identifica. Eu tive que me reapresentar, ‘olha, eu sou deputada’”, afirma Cristina.
Chegar à Câmara como parlamentar é tarefa difícil para qualquer um, mas os obstáculos superados por pessoas negras são maiores do que os enfrentados por pessoas brancas.
De acordo com o estudo “Desigualdade Racial nas Eleições Brasileiras”, candidatos brancos têm pelo menos o dobro de chance de serem eleitos deputado federal ou estadual na comparação com candidatos negros (pretos e pardos).
Feito pelos economistas Sergio Firpo, Michael França, Alysson Portella e Rafael Tavares, pesquisadores do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, o trabalho mostra, por exemplo, que houve 3.117 candidatos negros disputando uma vaga na Câmara em 2018.
Com 124 eleitos, a taxa de sucesso foi de 3,98%. No caso dos brancos, houve 4.425 candidatos e 386 eleitos, com uma taxa de sucesso de 8,72%. Veja os dados completos.
Essa disparidade, contudo, pode ser ainda maior, porque o estudo levou em conta o banco de dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), baseado em autodeclaração e sujeito a fraudes ou erros, com aumento artificial das candidaturas negras.
“Mesmo com as limitações da base de dados, espera-se que a divulgação desses resultados contribua para que a sociedade comece a ter maior clareza da dimensão da falta de representatividade na nossa ‘democracia’ e como isso afeta suas vidas”, diz França, que também é colunista da Folha (assim como Firpo).
Para mensurar de forma mais precisa essa falta de representatividade, os pesquisadores recorreram ao índice de equilíbrio racial (IER), uma ferramenta que também foi aplicada no Ifer (Índice Folha de Equilíbrio Racial).
Numa sociedade com equilíbrio racial, a proporção de negros e brancos entre os deputados seria parecida com a proporção de negros e brancos entre os eleitores.
No caso da Câmara, porém, a comparação ideal não é com a divisão racial no país como um todo, porque os candidatos disputam apenas os votos dos eleitores de um determinado estado.
Assim, os quatro economistas olharam a proporção de negros e brancos entre as pessoas com 18 anos ou mais em cada unidade da Federação e as compararam com as respectivas bancadas de deputados, tanto na Câmara quanto nas Assembleias Legislativas.
A pesquisa revela, entre outras coisas, que houve leve redução da desigualdade entre deputados federais de 2014 para 2018, mas, ainda assim, a maior parte dos estados registrou um IER que aponta desequilíbrio muito alto.
Os dados também mostram que, em quase todos os estados, o número de deputados negros é menor do que seria esperado levando-se em conta a divisão racial.
Os casos mais extremos são Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul, que não elegeram nenhum deputado federal negro. No primeiro estado, o percentual de equilíbrio seria de 64%, ou 5 negros entre os 8 congressistas. No segundo, 21%, em torno de 6 ou 7 deputados negros entre 31 eleitos.
O deputado federal Paulo Pimenta, presidente do PT-RS, reconheceu o problema e destacou os resultados da eleição de 2020, quando Porto Alegre passou de 1 para 5 vereadores negros, um dos quais de seu partido.
“Isso passa por uma política específica para candidaturas de mulheres e homens negros que envolve uma série de iniciativas, inclusive de utilização do fundo eleitoral para valorização e fortalecimento delas”, disse Pimenta.
Fábio Branco, prefeito de Rio Grande e presidente do MDB gaúcho, também ressaltou os resultados das eleições municipais.
No Rio Grande do Norte, um aspecto citado como explicação é o número baixo de cadeiras na Câmara, apenas oito. Como os partidos de maior bancada costumam eleger no máximo dois nomes, apostar em um candidato novo –negro ou branco— pode custar o cargo de quem tenta a reeleição.
O número baixo de cadeiras, porém, não impediu que Rondônia, com os mesmos oito lugares na Câmara, estivesse na outra ponta do ranking como um dos dois estados que atingiram a faixa de equilíbrio racial –o outro é Amazonas.
Terra de Silvia Cristina, Rondônia teve o melhor IER de 2018 e o segundo melhor de 2014, mas a deputada sabe que esse equilíbrio ainda não veio por inteiro.
“A mulher passa por problemas. E nós que somos negras, ainda mais. Não é fácil”, diz. “Sou a primeira deputada negra do estado de Rondônia a ocupar esse espaço. Então, é motivo de alegria essa quebra de paradigma.”
O QUE EXPLICA O DESEQUILÍBRIO RACIAL?
O foco dos pesquisadores do Núcleo de Estudos Raciais do Insper não era explicar por que existe esse desequilíbrio, mas o estudo ajuda a pensar quais hipóteses fazem mais sentido.
“Nossa análise aponta para um alto nível de desequilíbrio racial entre deputados eleitos e reeleitos, porém um desequilíbrio relativamente baixo entre candidatos. Isso indica que o principal obstáculo para a equidade racial na representação política não se deve a cidadãos negros não estarem dispostos a concorrer nas eleições”, escrevem os autores.
Para o quarteto de economistas, a resposta pode estar no dinheiro. Eles analisaram as principais fontes de recursos para financiamento de campanhas e perceberam que, em média, os candidatos negros recebem menos verbas do que os candidatos brancos –a cota para distribuição do fundo eleitoral passou a valer na disputa de 2020.
Esse fator também é apontado pelo cientista político João Feres, coordenador do Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa), da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
“Quando chega na política, o financiamento é mais determinante na desigualdade. Os candidatos negros têm muito menos dinheiro para fazer campanha”, diz.
“Além disso, depois que a pessoa é eleita… O cara é branco, vem de um meio social com poucos amigos negros, quase nenhum. Talvez ele pudesse indicar pessoas negras para cargos, mas o networking dele sofre de uma ‘branquidade’ profunda”, afirma Feres.
A cientista política Nailah Neves Veleci, pesquisadora do Maré – Núcleo de Estudos em Cultura Jurídica e Atlântico Negro, ligado à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, chama a atenção para o imaginário social que está na cabeça do eleitor e dos dirigentes partidários diante de candidaturas negras.
“Os cânones da sociologia, da ciência política, da filosofia colocam o homem branco como um ser universal e o conhecimento europeu como único e verdadeiro. Em contrapartida, o negro é apresentado como perigoso, inferior, criminoso, irracional, enfim, vários estereótipos racistas”, diz.
Veleci afirma que as consequências dessa situação vão muito além da questão eleitoral: “Não tem como falarmos de democracia quando os dois maiores grupos da população brasileira [mulheres e negros] têm dificuldade de chegar a cargos de poder”.
E por que isso importa? “Representatividade em cargos de poder é uma questão de qualificar nossas políticas, diversificar a identificação de problemas da sociedade, que são múltiplos, e a possibilidade de se apresentarem novas soluções”, diz Veleci.
A deputada Silvia Cristina percebe em seu dia a dia como isso é importante. Ela não reclama de falta de oportunidades para si em seu trabalho parlamentar, mas sabe que, sozinha, pode fazer pouca diferença.
“Para que tenhamos oportunidades de avançar um pouco mais, temos que ter mais vozes ecoando”, diz. “[Se houvesse mais negros na Câmara,] nós seríamos mais ouvidos.”
Uirá Machado, Tayguara Ribeiro e Fernando Pedroso / Folha de São Paulo