Elias de Oliveira Sampaio

Políticas Públicas

Economista do Ministério da Economia. Mestre em Economia e Doutor em Administração Pública pela UFBA. Autor de diversos trabalhos acadêmicos e científicos, dentre eles o livro Política, Economia e Questões Raciais publicado - A Conjuntura e os Pontos Fora da Curva, 2014 a 2016 (2017) e Dialogando com Celso Furtado - Ensaios Sobre a Questão da Mão de Obra, O Subdesenvolvimento e as Desigualdades Raciais na Formação Econômica do Brasil (2019). Foi Secretário Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) e Diretor-presidente da Companhia de Processamento de Dados do Estado da Bahia (Prodeb), Subsecretário Municipal da Secretaria da Reparação de Salvador (Semur), Pesquisador Visitante do Departamento de Planejamento Urbano da Luskin Escola de Negócios Públicos da Universidade da Califó ;rnia em Los Angeles (UCLA), Professor Visitante do Mestrado em Políticas Públicas, Gestão do Conhecimento e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Professor, Coordenador do Curso de Ciências Econômicas e de Pesquisa e Pós-Graduação do Instituto de Educação Superior Unyahna de Salvador.

Sobre Monstros e Abismos

O título do artigo vem de uma das máximas mais perturbadoras do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, no seu livro Além do Bem e do Mal – Prelúdio a uma Filosofia do Futuro: “quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você”. Perturbador é o adjetivo mais simples que podemos utilizar para falar desse aforismo de número 146, que remonta ao ano de 1886.

Nos últimos tempos, muitos são os acontecimentos que tem nos despertado essa sensação perturbadora, nos termos que foram colocadas há mais de um século pelo Filosofo Alemão. Na semana que passou, por exemplo, fomos mais uma vez forçados, pelos fatos e pela mídia, a discutir a verdadeira guerra civil que vem sendo observado no país.
A morte de um jovem médico, a facadas, em pleno bairro nobre do Rio de Janeiro, numa pista de ciclismo, fez com o “mainstream” da imprensa nacional voltassem suas luzes sobre a questão. Aqui na Bahia, o brutal assassinato, a sangue frio e com requintes de perversidade, de um jovem policial militar que entrava em uma agência dos correios que estava sendo assaltada foi também motivo para os meios de comunicação, a sociedade, agentes e atores políticos viessem a público para apontar aquilo que eles consideram a realidade subjacente aos diversos problemas de segurança pública que existe no país e, de certa maneira, tentar justificar as contingências a que são submetidos quando do enfrentamento desigual entre as forças repressivas frente a crescente ação de bandidos cada vez mais aparelhados, em termos materiais, organizativos e institucionais, para os mais diversos tipos de crime.

Fatos dessa natureza se constituem em fatores estressantes para o ambiente social porque expõe, mais diretamente, a crua realidade que vivemos no cotidiano quando andar de bicicleta em plena luz do dia ou ir a uma agência de correios pode significar perigo de morte. Infelizmente, esses casos emblemáticos se tornam cada dia mais sistêmicos se considerarmos sua recorrência em escala nacionais. No entanto, o olhar de nossa sociedade parece que ainda não está devidamente orientado para perceber que os monstros e os abismos nietzschianos já se encontram muito mais próximos de nós do que julgamos e não são esses eventos pontuais que encerram a verdadeira questão.
A rigor, o nosso povo está simplesmente se matando, cada vez mais, por motivos torpes, superficiais e pela falência de políticas públicas apropriadas para o enfrentamento da complexidade de um país extremamente rico, mas profundamente desigual. Nesse sentido, os fatores estressantes apontados acima nada mais são do que amostras da violência que é diariamente exposta pela mídia sensacionalista, mas que comumente parece dizer respeito apenas ao que eles consideram submundo de nossas comunidades pobres e foras da lei.

Os corpos mortos produzidos e encontrados na periferia de grandes e médias cidades são vistos pela elite dirigente, e vendidos pela imprensa mais conservadora, apenas como mais algumas estatísticas de nossas vicissitudes que, pela recorrência, tem se transformado em tema de filmes e novelas que, como nas arenas romanas de outrora, são assistidos com grande excitação por possíveis alvos, vítimas e, até mesmo, alguns algozes.
A nossa perplexidade e preocupação quanto ao atual momento de violências e criminalidades, deveria ser medida pelo nível de incômodo para a nossa humanidade da visão diária de corpos de pessoas como nós, muitas vezes mutilados, estendidos pelo chão, mas, infelizmente, a conta não é feita dessa maneira. Há uma categorização que hierarquiza o nível naturalização social dessas mortes. Do montante de corpos que diariamente surgem pelos quatro cantos de nosso território, parecem ser expurgados da matemática de nossa consciência coletiva, a humanidade de negros, homossexuais, mulheres e todos aqueles que o narcisismo de nossas elites não conseguem enxergar, porquanto não são vistos como seus espelhos.

Essa é uma das explicações para que os doze mortos da Vila Moisés no Cabula e os nove detentos, alguns decapitados, do presídio em Feira de Santana, sejam assimilados por parte de alguns atores sociais como apenas mais dois eventos “naturais” de um submundo que parece não fazer parte de uma mesma nação, de um mesmo estado, de um mesmo lugar.

A verdade é que o abismo nietzschiano já adentrou no âmago de parte significativa de nossa sociedade e por isso registramos, sem medo de errar, que é falso o dilema de que para aprofundar a nossa sensação de segurança e bem-estar geral temos que reduzir garantia de direitos e abstrair os princípios de direitos humanos que é imperativo a um Estado que se pressupõe democrático de direito. Obviamente que essa é uma das equações mais difíceis de se obter um resultado otimizado, considerando a fragilidade das organizações, instituições públicas e políticas que construímos, mas não podemos, em hipótese alguma, perder a perspectiva de poder solucioná-la porque a alternativa a ela, no longo prazo, é a barbárie. Simples assim.

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