26 abril 2024
Quando Donald Trump pediu aos eleitores da Carolina do Norte que votassem duas vezes pelo correio, ele fez mais do que incitar o público a cometer um crime previsto na lei. Ele recorreu ao que parece ser seu principal foco na busca pela reeleição —suprimir o voto.
O presidente americano fez o comentário absurdo numa visita ao estado na quarta-feira (2), quando sugeriu que, se conseguissem votar duas vezes, poderiam confirmar que é fácil cometer fraude eleitoral. Desde a campanha de 2016, Trump espalha mentiras sobre fraude eleitoral e deixou claro que considerava sua eventual derrota uma prova de ilegitimidade do sistema.
Não há dúvida de que a eleição presidencial do dia 3 de novembro sofre ataques em múltiplas frentes e tem o potencial de ser a mais questionada do último meio século. Mas os Estados Unidos não têm história de fraude eleitoral. Estudo após estudo mostram que o voto fraudulento, seja pelo correio ou em pessoa, é uma exceção rara.
O país tem, no entanto, uma história de supressão de voto indissociável de sua história racial. Depois da Guerra Civil, o Congresso aprovou a 15a emenda da Constituição, que proibia negar o direito ao voto com base em “raça, cor ou condição prévia de servidão” em toda a federação.
Estados do Sul escravocrata, derrotado na guerra, começaram, então, a passar leis para dificultar o acesso de negros às urnas. Faziam exigências variadas, como prova extra de identidade e testes bizarros de alfabetização que continuaram pelo século 20.
Até 1964, ano da passagem do Ato de Direitos Civis que baniu a segregação racial nos EUA, a Luisiana aplicava um teste escrito com questões impossíveis de responder como “Imprima a palavra voto de cabeça para baixo, mas na ordem correta”.
É mais fácil obstruir o direito ao voto em eleição nacional num país cujo sistema eleitoral é dependente dos estados —são eles que controlam a infraestrutura e a apuração eleitoral. Nas últimas décadas, estados com poder legislativo de maioria republicana usaram um sofisticado repertório de leis locais e decisões do poder executivo para desencorajar minorias a votar, já que o voto não é obrigatório no país.
Mas foi no governo do primeiro presidente negro da história que a Suprema Corte desferiu um golpe decisivo contra o direito de voto das minorias. Numa decisão aprovada por 5 votos a 4 em 2013, meses após a reeleição de Barack Obama, a corte autorizou vários estados, a maioria do Sul, a elaborar leis eleitorais sem aprovação prévia do governo federal. A decisão, na prática, invalidou o efeito do histórico Ato de Direitos Civis no processo eleitoral.
A afirmação feita por John Roberts, o presidente da Corte, ao justificar o voto da maioria, demonstra uma cegueira dolorosa se relida neste trágico ano marcado por assassinatos de negros pela polícia, mortes desproporcionais de negros e latinos na pandemia do coronavírus e pela crescente ousadia da militância por supremacia branca. Roberts escreveu, otimista, em 2013: “Nosso país mudou”.
O jornalista Ari Berman publicou, em 2015, um dos mais elogiados trabalhos recentes sobre a supressão de voto nos EUA. Ele é autor de “Give Us the Ballot: The Modern Struggle for Voting Rights in America” (deem-nos a cédula: a luta moderna pelo direito ao voto na América). O livro narra em detalhe os esforços de retaliação racial nas urnas a partir de 1965.
Berman destaca, numa conversa por telefone com a Folha, a reversão de papeis ocorrida no país. Foram democratas do Sul que primeiro implementaram uma agenda de obstrução do voto de negros. A supressão do voto só se tornou uma bandeira republicana a partir dos anos 1960, com a chamada Estratégia do Sul —que consistia em explorar o ressentimento dos eleitores democratas brancos e foi ativamente encorajada por Richard Nixon, eleito presidente em 1968.
“A pandemia já torna esta eleição um grande desafio”, diz Berman. “A redução do número de locais de votação é um problema real.” Ele vê sinais vermelhos em estados em transformação demográfica como Texas e Geórgia, governados por republicanos, que dificultam a burocracia do registro de novos eleitores, uma população cada vez mais composta por minorias raciais.
O autor acha nefasto o papel exercido pelo secretário de Justiça, William Barr, considerado um dos mais servis a um presidente a ocupar a função. “Ele espalha mensagens que confundem, como a ideia de que republicanos não gostam de votar pelo correio. Não é verdade. Eleitores rurais e idosos, que são um segmento mais conservador, votam em grande número pelo correio”, explica.
Berman acredita que o Partido Democrata está preparado para o pior. Com a esperada lentidão maior da apuração deste ano, ele prevê uma enxurrada de ações judiciais nos estados movidas pelos dois partidos.
Donald Trump recebeu 8% do voto negro em 2016, contra 88% de Hillary Clinton. Neste ano, o apoio de Trump entre eleitores negros se manteve abaixo de 10%. Entre eleitores não registrados como independentes (sem partido), 98% dos negros americanos se declararam democratas numa pesquisa recente.
Há farta evidência de que atores estrangeiros, especialmente o russo Vladimir Putin, cujo governo sabotou com sucesso a campanha de sua nêmese Hillary Clinton, em 2016, usam o ecossistema digital para interferir na eleição presidencial americana. Dois terços das postagens no Facebook feitas por trolls a serviço da inteligência russa, naquele ano, tinham como alvo os negros, encorajando especialmente a abstenção.
Mas o poder de Putin não se compara ao poder de autosabotagem da democracia constitucional mais antiga do mundo.
Folha de S. Paulo