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Paulo Modesto é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia 19 de setembro de 2021 | 09:33

‘Nossa Constituição deve ser defendida da erosão da democracia e do populismo’

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Considerado um dos maiores constitucionalistas da Bahia, o procurador do Ministério Público do Estado e professor da UFBA Paulo Modesto avalia que, diante de todos ataques contra a Constituição Federal nos últimos anos, ela “deve ser defendida, protegida contra os poderes selvagens e resguardada do imediatismo, da erosão da democracia, do populismo e de discursos que maltratam a segurança jurídica e os direitos fundamentais”.

Segundo o professor, a Carta pode ser também criticada e reformada, pois não é diploma estático ou fóssil jurídico. “A Constituição é pauta normativa aberta ao tempo, porém não deve ser atacada porque a orquestra desafina. Deve ser enriquecida e atualizada de forma ponderada, observadas as regras de alteração, isto é, o devido processo”, continua Modesto, que é tambémo fundador do Centro de Cultura Jurídica da Bahia.

No entanto, o procurador, que teve o nome cotado para assumir uma cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, avalia que é possível aceitar algumas das críticas que se fazem à Constituição. “Sim, é possível aceitar, por isso sempre fui um reformista”, diz Modesto nesta entrevista exclusiva ao Política Livre.

“Sou um reformador, não um conservador de estruturas jurídicas que se mostrem superadas. Nada tenho contra alterar, respeitado o devido processo, a Constituição Federal e a Constituição Estadual. O problema é quando reformas propostas são saudosistas de tempo idos e de abusos vencidos pelo aperfeiçoamento das instituições”, ressalva.

Com toda tensão política inflamada no país desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff e durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, o professor avalia que “a democracia brasileira é testada desde sempre”. Para ele, “o que perturba agora é a forma agressiva e debochada como são atacadas as instituições, mediante propostas-placebo e propostas-perigo”.

“É difícil às vezes saber o que é sério e o que é simples diversionismo. Mas não se devem desperdiçar crises, ensinava um velho estadista inglês. A experiência dos últimos anos, por exemplo, revela que o diálogo institucional dos Poderes pode ser comprometido pelo chamado “poder de agenda” das chefias deles e até de outras autoridades individuais. Não há sentido em o Congresso aprovar uma lei, como a dos royalties de petróleo, e a matéria ficar anos no limbo de uma liminar individual, sem ser colocada para julgamento na pauta do plenário do STF”, registra.

Confira a entrevista na íntegra:

Política Livre: O senhor publicou recentemente um artigo em que, ao falar sobre o processo sucessório na administração pública, defendeu a regra da antiguidade para a disputa da mesa diretora de órgãos como o Tribunal de Justiça da Bahia. O que se perde quando um critério como esse é desconsiderado?

Paulo Modesto: Desde março de 2019, de forma regular, tenho escrito artigos para a Coluna Interesse Público, do site Conjur. São artigos mensais. Em 2019 e 2020 publiquei artigos sobre a reforma da Previdência e a reforma Administrativa, todos reunidos em livro recente [Café com Prosa: crônicas de direito e reforma do estado. Rio de Janeiro: Ed. GZ, 2021, 435p]. Neste ano de 2021, o foco de meu interesse foi o devido processo legal sob diferentes perspectivas. O artigo “Devido processo legal das eleições administrativas e o princípio da anualidade” foi apenas o último dos artigos de uma série e não um artigo isolado, dirigido ao Tribunal de Justiça da Bahia. O texto trata de eleições administrativas em geral, no Poder Legislativo, Judiciário e Executivo. Sintoniza com minhas preocupações sobre segurança jurídica e devido processo, defendendo que nas eleições administrativas também deve ser aplicado o Artigo 16 da Constituição Federal, cuja finalidade é a de assegurar estabilidade às regras eleitorais, pois essa norma exige que a alteração de normas eleitorais ocorra um ano antes dos “processos eleitorais” para serem aplicadas às eleições imediatas. O artigo defende a segurança jurídica das regras eleitorais administrativas e, no caso da eleição interna dos órgãos administrativos do Poder Judiciário, a aplicação de regras aprovadas a menos de um ano apenas para as eleições seguintes, isto é, a aplicação do princípio da anterioridade ou anualidade eleitoral. Portanto, o texto não defendeu a regra da antiguidade; defendeu a estabilidade das regras eleitorais e a aplicação da anterioridade – ou anualidade – às eleições administrativas. O critério da antiguidade para definição dos elegíveis para os cargos administrativos eletivos pode ser alterado sem problema, desde que respeitada a limitação temporal do Art. 16 da Constituição. Nesse dispositivo constitucional a palavra lei tem sentido abrangente e alcança qualquer alteração nas regras do jogo eleitoral, inclusive alterações administrativas e de orientação jurisprudencial. É como o Supremo Tribunal Federal aplica o princípio da anualidade, o que demonstro no artigo através de referência a várias decisões do STF. Portanto, alterações legislativas, administrativas e jurisprudenciais que possam afetar de modo relevante processos eleitorais podem ocorrer tranquilamente durante o ano das eleições, mas somente são aplicáveis às eleições subsequentes e isto vale também para o direito administrativo eleitoral. Em um dos tópicos do texto analisei a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 3.976, da relatoria do Ministro Edson Fachin, julgada em 25/06/2020, que declarou não recepcionado o artigo 102, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Sustentei que essa decisão não declarou inconstitucional a manutenção do critério da antiguidade, mas homenageou a autonomia administrativa dos Tribunais, o autogoverno de cada Corte para dispor, em regimento interno, sobre a matéria. O próprio STF manteve o critério da antiguidade para a escolha de seu Presidente, regra consuetudinária, que reserva o cargo de Presidente ao Ministro mais antigo que ainda não tenha exercido mandato regular de Presidente da Corte. Há bons argumentos contra e a favor da regra da antiguidade como critério de elegibilidade na administração dos Tribunais, e por isso o texto não tomou partido sobre esse tema de mérito. O texto limitou-se a tratar da questão jurídica da estabilidade das regras eleitorais administrativas.

No mesmo texto, o senhor chamou a atenção para o fato de que uma mudança dessas não diz respeito apenas ao Poder Judiciário, mas aos demais Poderes, já que pode repercutir, por exemplo, na cadeia sucessória do governo baiano. Isso poderia justificar uma insurgência do MP ou da Procuradoria Geral do Estado contra a medida no caso de ser aprovada pelo TJ?

A cadeia sucessória é um argumento forte – ao lado da segurança jurídica – a favor da aplicação da anterioridade – ou anualidade – às eleições administrativas. Se os Presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal integram a cadeia sucessória para o cargo de Presidente da República, cuja eleição deve observar regras fixadas um ano antes do sufrágio, pode a eleição interna do presidente desses outros órgãos superiores do Estado ocorrer com regras alteradas às vésperas dos respectivos processos eleitorais administrativos? Penso que não. Entendo que seria uma contradição sistêmica exigir a estabilidade das regras eleitorais para a eleição do titular e permitir a alteração a qualquer tempo das regras de escolha e eleição de seus substitutos constitucionais. A Constituição deve ser interpretada de forma sistemática, sem contradições internas ou em sua aplicação. Essa orientação aplica-se também para a eleição dos Presidentes dos Tribunais de Justiça dos Estados, pois estes agentes integram a cadeia sucessória do cargo de Governador do Estado. Exemplifico, no texto, com um episódio ocorrido na Bahia: em 1994, o Desembargador Ruy Dias Trindade assumiu o Governo do Estado por um mês, entre 2 de abril a 2 de maio de 1994. No texto não faço conjecturas sobre como o Ministério Público ou a Advocacia do Estado compreenderiam a violação da anualidade eleitoral. Essa matéria deve ser avaliada em seu momento próprio e pelos respectivos órgãos competentes.

É possível separar o interesse casuístico de quem tenta promover uma alteração dessas da evolução natural das relações em um Poder que apontaria, por exemplo, para a sua necessidade de modernização?

No texto não sustento que é casuísmo alterar regras eleitorais administrativas. Sustento apenas que a alteração deve ter eficácia para as eleições subsequentes, caso a modificação ocorra há menos de um ano do sufrágio. Escrevi com objetividade, sem juízos morais e sem tomar partido no mérito sobre saber se é conveniente ou inconveniente a ampliação da elegibilidade ou capacidade eleitoral passiva nos colegiados dos Tribunais ou de outros órgãos. Informei que há para a ampliação defensores com vozes legítimas, que sustentam o reforço à democraticidade do processo eleitoral administrativo, e críticos igualmente ponderados, que temem o aumento da politização e fratura interna dos colegiados. Essa é uma questão de decisão soberana e interna dos colégios administrativos. É constitucional a regra da antiguidade e a regra da elegibilidade geral. A questão jurídica que me interessava era apenas a de saber sobre a eficácia no tempo de eventual alteração das regras eleitorais internas.

O senhor é reputado como um dos maiores constitucionalistas da Bahia. Acha que os ataques à nossa Constituição Federal se justificam?

Escrevo como publicista, sem assumir fronteiras rígidas, e por isso trato de direito constitucional, administrativo, tributário, previdenciário, urbanístico e ambiental como áreas de um mesmo condomínio sem cercas. Essas disciplinas compõem parte relevante do direito público material e dialogam continuamente. No centro de todas essas disciplinas, em posição sobranceira, encontra-se a Constituição brasileira, que é compromisso intergeracional dinâmico e ao mesmo tempo base de nossa identidade como Nação. A Constituição deve ser defendida e reformada, protegida contra os poderes selvagens [de que nos fala Luigi Ferrajoli] e resguardada do imediatismo, da erosão da democracia, do populismo e de discursos que maltratam a segurança jurídica e os direitos fundamentais. Pode ser criticada e reformada, pois não é diploma estático ou fóssil jurídico. A Constituição é pauta normativa aberta ao tempo, porém não deve ser atacada porque a orquestra desafina. Deve ser enriquecida e atualizada de forma ponderada, observadas as regras de alteração, isto é, o devido processo.

Mas é possível aceitar algumas das críticas que se fazem a ela e defender um aperfeiçoamento da Carta ou ainda é muito cedo?

Sim, é possível aceitar, por isso sempre fui um reformista. Fui Consultor Jurídico e Assessor Especial da Reforma Administrativa no extinto MARE, no primeiro Governo FHC, tendo atuado ativamente no processo de elaboração da Emenda Constitucional 19/1998. Depois disso trabalhei com todos os governos subsequentes na elaboração de minutas de projetos de lei – seja no segundo Governo FHC, seja no Governo Lula, seja no Governo Dilma. Portanto, sou um reformador, não um conservador de estruturas jurídicas que se mostrem superadas. Nada tenho contra alterar, respeitado o devido processo, a Constituição Federal e a Constituição Estadual. O problema é quando reformas propostas são saudosistas de tempo idos e de abusos vencidos pelo aperfeiçoamento das instituições. A EC 19/1998, por exemplo, no art. 37, V, da Constituição, limitou a criação de cargos em comissão a funções de direção, chefia e assessoramento. Fez isso em resposta aos numerosos abusos na área, alguns resistentes em pequenos municípios – há ainda hoje municípios nos quais a maioria do quadro de pessoal é formada por servidores voláteis, instáveis, comissionados, sujeitos aos caprichos e ao assédio do gestor de ocasião. A PEC 32, proposta pelo presidente Bolsonaro, na sua versão original era saudosista desse tempo superado em que não havia limite para a criação de cargos em comissão. Sou reformador, não saudosista de um passado que não era bom.

Como identificar críticas que se destinam a melhorar o funcionamento do país de outras cujo propósito é desconsolidar a democracia?

Sem ordem de hierarquia, sugiro observar quatro critérios. O primeiro critério é o da observância do devido processo legal. O segundo critério é conferir a aderência da proposta à dinâmica da democracia, que é a alternância do poder. O terceiro critério é a abertura para minorias e a proteção da divergência. Por fim, o quarto critério é analisar se a proposta facilita o funcionamento do regime de freios e contrapesos, o controle e a prestação de contas, ou favorece o abuso do poder e a interferência oculta de terceiros em processos eleitorais – interferência de empresas, lobbys ou de outro poder na economia interna das disputas eleitorais. O tema é complexo, mas esses critérios iniciais podem ajudar na formação de um juízo sobre a real democraticidade de qualquer proposta.

Como constitucionalista, imaginava que a democracia brasileira seria colocada em xeque tão cedo?

A democracia brasileira é testada desde sempre. O que perturba agora é a forma agressiva e debochada como são atacadas as instituições, mediante propostas-placebo e propostas-perigo. É difícil às vezes saber o que é sério e o que é simples diversionismo. Mas não se devem desperdiçar crises, ensinava um velho estadista inglês. A experiência dos últimos anos, por exemplo, revela que o diálogo institucional dos Poderes pode ser comprometido pelo chamado “poder de agenda” das chefias dos Poderes e até de outras autoridades individuais. Não há sentido em o Congresso aprovar uma lei, como a dos royalties de petróleo, e a matéria ficar anos no limbo de uma liminar individual, sem ser colocada para julgamento na pauta do plenário do STF. Tampouco há sentido institucional em um presidente eventual da Câmara de Deputados, sozinho, desrespeitar prazos de apreciação de pedidos de CPIs ou de pedidos de impeachment, sonegando ao plenário a manifestação política sobre a sua própria decisão. Tampouco deve haver nomeação unilateral discricionária pelo Chefe do Poder Executivo Federal, sem apreciação do Senado, do Delegado Chefe da Polícia Federal, autoridade máxima de investigação de crimes eventuais das próprias autoridades federais. Há muitos aperfeiçoamentos institucionais que a experiência dos últimos anos sugere. Por que não prever uma medida na Constituição que autorize, por exemplo, quando o STF declarar a inconstitucionalidade por omissão de uma norma, uma lacuna regulatória, que ocorra uma repercussão imediata de aceleração do processo legislativo dos projetos de lei em curso no Congresso sobre a matéria e, por que não, reversamente, autorizar o Congresso a aprovar por resolução uma representação dirigida à Suprema Corte para que dada questão, há mais de um ano em curso de apreciação no STF, seja incluída na pauta de deliberação da Corte em no máximo cinco sessões? Nos dois casos, de modo quase simétrico, não há substituição de um Poder pelo outro, porém é criado um incentivo para evitar o excesso do poder de agenda no funcionamento de ambos. O Estado brasileiro precisa ser republicano, democrático e eficiente. E no pano de fundo é preciso resistir ao patrimonialismo e ao autoritarismo, heranças muito presentes em nossa formação histórica.

Como o senhor viu a tramitação da PEC que torna obrigatório o voto impresso e auditável no país? A proposta era necessária ou absolutamente dispensável no processo eleitoral brasileiro?

A impressão que tenho – acompanhando de longe – é que foi um debate diversionista, que buscou ocupar a opinião pública e afastá-la de temas muito concretos e cruéis do nosso tempo: a fragilidade da resposta à pandemia, o desemprego explosivo, a crise econômica, o aumento da desigualdade social. Sou velho o suficiente para ter atuado como Promotor Eleitoral quando ainda havia apuração de eleições com mapas em papel, votos em papel ou impressos, e posso testemunhar que a fragilidade e a corrupção dos resultados era muito maior do que no atual sistema de apuração por voto eletrônico. Sempre que a corrupção e a manipulação eleitoral são dominantes, em qualquer lugar no mundo, há tendência a benefício dos atuais governantes. O que assistimos nos últimos anos foi exatamente o oposto: alterações de governos, renovação parlamentar, alternância de ideologias políticas, sem que qualquer dos partidos perdedores tenha colocado seriamente em dúvida o funcionamento da Justiça Eleitoral e do sistema eletrônico de votação, que é auditável e tem sido auditado a cada eleição, pelos partidos e por especialistas. A atuação do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Luis Roberto Barroso, tem sido impecável no esclarecimento de todas as insinuações e teorias conspiratórias criadas para colocar em dúvida o sistema eleitoral brasileiro. A proposta do voto impresso é outra proposta saudosista de tempos superados, que somente recebeu eco por falta de memória coletiva do que ocorria quando o voto era impresso e apurado manualmente. Hoje esse retrocesso traria judicialização explosiva, risco de manipulação, custos agravados, e novas suspeitas e incompreensões sobre o processo eleitoral. A gramática da democracia precisa ser atualizada para responder às novas formas de populismo e reforçar a solidariedade social e a educação, pois somente com informação qualificada sobre como funciona o Estado é possível reduzir os danos da desinformação simplificadora das fake news, que circulam de forma feroz e oca, provocando danos reais ao funcionamento das instituições.

Mateus Soares
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