Foto: Arquivo Público DF
29 de março de 2024 | 11:00

Documento da FAB revela tortura na ditadura: ‘Que sejam punidos arrancadores de unhas’

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O agente secreto Antônio Pinto, o Carlos Azambuja ou Doutor Pirilo, dedicara os últimos anos de sua vida escrevendo livros. Publicou a Hidra Vermelha e o Araguaia Sem Máscara. Seguiu em ambos o conselho do Doutor Fábio, seu amigo do Centro de Informações do Exército (CIE), a respeito da repressão política durante a ditadura militar: “Sabemos que há muita coisa que não pode ser contada. Sabemos, entretanto, que há muita coisa que pode e deve ser contada”.

Há muita coisa que Pirilo deixou de contar nos livros. Eles são obras de um militar que tinha convicção de que estava do “lado certo da história”, que defendia que todos os métodos deviam ser usados contra o chamado “terrorismo”. Mas sabia que, sob o nome “terrorismo”, muitos colocavam parte da oposição à ditadura, que refutara a luta armada. Era o radicalismo daqueles oficiais que desejavam “limpar o terreno”.

Em 2015, Pinto se pôs à disposição para responder às perguntas e contar o que sabia. Resolveu dúvidas sobre o funcionamento do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA) e revelou nomes de agentes e de informantes. Na maioria das vezes, dava apenas pistas, como se testasse a capacidade do interlocutor para ir atrás dos fatos. Mas sempre evitava uma coisa: contar qual era a sua verdadeira identidade.

Foi preciso quase um ano de pesquisa para descobrir que por trás do nome Carlos I. S. Azambuja estava o capitão Antônio Pinto. Antes de fazer parte da comunidade de informações, ele trabalhara na Base Aérea dos Afonsos, na Escola da Aeronáutica e no gabinete dos ministros Eduardo Gomes e Márcio de Souza e Mello. Sua vida se tornou inseparável da comunidade de informações depois da estadia em Fort Gullick, na zona do canal do Panamá. Ele foi escolhido de última hora para substituir um dos seis oficiais que deviam fazer o curso de contrainformações. Ao grupo se juntou o coronel-aviador João Paulo Moreira Burnier, que era então adido militar naquele país, e se tornaria o homem por trás da criação do serviço secreto da Aeronáutica. Era agosto de 1967.

As aulas de interrogatório em Forte Gullick

Pinto teve aulas de interrogatório com um capitão americano, veterano da guerra do Vietnã. Aprendeu então que sempre devia se colocar em posição superior ao do interrogado e assim foi fotografado durante o curso – imagem abaixo publicada, com a anotação feita de próprio punho por Pinto, informando que seu instrutor, que usava o codinome McCarthy, voltara uma segunda vez ao Sudeste Asiático, onde morrera em combate.

Pinto teve ainda aulas de contraguerrilha em meio a um calor intenso. L.W.B.G., o capitão Lúcio, esteve no Panamá um ano depois. “Nós não aprendíamos a torturar; nós aprendíamos a fazer perguntas. Nunca faça uma pergunta que a reposta seja sim ou não. Faça perguntas que obriguem o cara falar mais um pouco.” Quando L.W.B.G. retornou, foi designado chefe da Divisão de Contrainformações do CISA, criado em 1968, e lá permaneceria quase dez anos.

Assim como L.W.B.G., Pinto contava com a confiança de Burnier. Ao deixar o CISA, em 29 de maio de 1970, o já brigadeiro Burnier registrou um elogio em sua ficha: “Esse oficial demonstrou, com as noites mal dormidas e horas extras de trabalho, abnegação, altruísmo, amor e dedicação ao trabalho militar, capacidade e competência profissional acima das médias normais”.

Pinto sabia que se torturava no CISA, mas dizia não ser “adepto do método”. Para provar o que dizia, entregou ao Estadão um documento singular: com data de 3 de maio de 1969, a Parte n.º 8 era endereçada ao “Sr. Chefe do Núcleo do Serviço de Informações de Segurança da Aeronáutica”. O documento dizia:

“Participo a V. Exma que, conforme o recorte de jornal anexo, tomei conhecimento do suicídio do ex-sgt da FAB João Lucas Alves, demitido pela Revolução de 1964; conforme ainda o noticiário acima referido, o corpo do ex-sgt Lucas Alves apresentava diversos ferimentos e ‘arrancamento de unhas dos dedos das mãos’”.

No segundo item da Parte, Pinto contava que procurou obter, pelos canais competentes, uma cópia do exame de corpo delito efetuado no cadáver “com a finalidade exclusiva de desmentir mais uma notícia inverídica publicada pela imprensa, visando incompatibilizar a Revolução com a opinião pública”. É aí que o documento mostra por que ele permaneceu 50 anos em sigilo.

“Entretanto, de posse do exame de corpo de delito, comprova-se sem sombra de dúvida que o ex-sgt Lucas Alves, preso político por participar de assaltos a bancos em proveito do grupo (Carlos) Marighella, foi, antes de suicidar-se, brutalmente espancado por pessoas que não honram a Revolução e que (…) satisfazem seus instintos bestiais, violentando aquilo que existe de mais caro, a dignidade da pessoa humana. Pelo que, solicito as providências de V. Exma junto a quem de direito a fim de que sejam punidos os arrancadores de unhas”.

A singularidade do documento do capitão

A singularidade da parte de Pinto é a admissão da tortura em um relatório de um órgão de informação militar e o pedido de punição dos culpados. Não só. Há no documento três verdades e duas imposturas. A primeira verdade é que Antônio Pinto estava comprometido até a medula com o governo dos generais. A segunda é que Alves aderiu à luta armada contra a ditadura.

Em julho de 1968 ele e dois companheiros do Comandos de Libertação Nacional (Colina) planejaram matar um aluno da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, o oficial do exército boliviano Gary Prado, envolvido, um ano antes, na morte de Ernesto Che Guevara. Mas, em vez de fuzilar o boliviano, o trio matou o major alemão Edward Ernest Tito Otto Maximilian von Westernhagen, outro aluno da escola.

Alves foi preso um ano depois, em Belo Horizonte, e levado à Delegacia de Furtos e Roubos. Aqui a terceira verdade da parte de Pirilo: o ex-sargento foi torturado de forma extrema na delegacia, conhecida como “O Inferno da Floresta”.

Surge então a primeira impostura: Alves não se suicidou, mas morreu sob tortura. E, por fim, Pinto sabia que nada seria investigado e nem sequer discordava dos métodos ilegais; apenas se viu obrigado a pôr no papel o que apurara ao remeter as informações ao chefe, dissociando as Forças Armadas da brutalidade da polícia.

Não seria o único. A prática se tornaria comum mais tarde entre os militares: culpar os “tiras” e os delegados, como Sérgio Paranhos Fleury, por todos os abusos e violências do regime.

As operações do CISA no Araguaia

As operações do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA) se concentravam no Rio. Tinham no começo dos anos 1970 como chefe o tenente-coronel Fernando Muniz. Sua autonomia, segundo Pirilo, era “total”. Sua Seção de Operações dispunha de pouco mais de uma dezena de homens, enquanto a Análise contava com cinco oficiais e outros cinco sargentos. Toda a estrutura da Agência Rio, comandada pelo coronel Renato Pinho Bittencourt.

Durante os anos da ditadura, esse esquema experimentou algumas exceções, em que esse tipo de operação foi executado pela agência de Brasília do CISA. A mais importante delas foi o caso da guerrilha do Araguaia, quando o CISA participou de parte das operações do Exército de aniquilamento dos militantes do PCdoB. O brigadeiro Newton Vassalo, então comandante do Centro, apoiou as ações do CIE, enviando à região quatro agentes, além de aviões de transporte e quatro helicópteros.

O chefe da Seção de Operações do CISA-Brasília, o coronel Jonas Alves Correa, esteve pessoalmente na área para informar ao brigadeiro o que se passava. Terminada a guerrilha, o órgão ajudaria ainda o Exército a transportar corpos dos prisioneiros para serem queimados na Serra das Andorinhas, no sul do Pará. Era o jeito de os militares sumirem com os vestígios do massacre. Pinto conheceu todas essas histórias.

PS: Parte das informações deste texto consta do livro Cachorros, a história do maior espião dos serviços secretos militares e o combate ao comunismo até a Nova República, a ser publicado pela editora Alameda.

Marcelo Godoy/Estadão
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