23 novembro 2024
Economista do Ministério da Economia. Mestre em Economia e Doutor em Administração Pública pela UFBA. Autor de diversos trabalhos acadêmicos e científicos, dentre eles o livro Política, Economia e Questões Raciais publicado - A Conjuntura e os Pontos Fora da Curva, 2014 a 2016 (2017) e Dialogando com Celso Furtado - Ensaios Sobre a Questão da Mão de Obra, O Subdesenvolvimento e as Desigualdades Raciais na Formação Econômica do Brasil (2019). Foi Secretário Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) e Diretor-presidente da Companhia de Processamento de Dados do Estado da Bahia (Prodeb), Subsecretário Municipal da Secretaria da Reparação de Salvador (Semur), Pesquisador Visitante do Departamento de Planejamento Urbano da Luskin Escola de Negócios Públicos da Universidade da Califó ;rnia em Los Angeles (UCLA), Professor Visitante do Mestrado em Políticas Públicas, Gestão do Conhecimento e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Professor, Coordenador do Curso de Ciências Econômicas e de Pesquisa e Pós-Graduação do Instituto de Educação Superior Unyahna de Salvador.
O início do governo interino de Michel Temer não poderia ser mais negativamente simbólico: salvo raríssimas exceções, todos os seus auxiliares diretos de primeiro escalão são homens brancos e historicamente comprometidos com tudo que há de mais conservador e reacionário da sociedade brasileira. A despeito de formar um gabinete quase parlamentarista, demonstrando de primeira hora, a sua diferença para o governo que ele acabara de derrubar, o presidente provisório parece não ter percebido algo que pode lhe custar a sustentabilidade de seu projeto de poder no médio prazo, qual seja, que uma presumida legitimidade institucional não significa, necessariamente, legitimidade política para mantê-lo no longo prazo. De fato, apenas poucas horas de dar posse ao seu “leuco-ministério” já pôde perceber que o ambiente controlado e amistoso das instituições que fomentaram e homologaram o processo de impedimento da Presidenta não é o mesmo da realidade fática da complexa e multifacetada sociedade brasileira. A repercussão da ausência de mulheres, negros e a extinção do Ministério da Cultura (Minc) foi apenas a parte mais aparente do desajuste Politico do governo vis-à-vis o seu pretenso ajuste institucional de curto prazo.
O monopólio da presença de homens brancos para comandar os destinos do país e mesmo a possibilidade de mulheres brancas ou negros que representam bases sociais conservadoras – tais com os do mandatário – no segundo e terceiro escalões retira qualquer possibilidade de uma interlocução qualificada e bem-intencionada deste governo com os movimentos sociais politicamente mais organizados, e consequentes, do ponto de vista das reais necessidades de transformação social e politica institucional do país. No caso específico do movimento negro, não vislumbramos nenhuma possibilidade de diálogo efetivo com um governo que, pela branquitude da composição de seu gabinete estratégico, demonstra de forma cabal que não só é avesso a tratar de questões raciais, em forma e conteúdo adequado, mas nega peremptoriamente, todas as lutas e vitórias colhidas historicamente pelo movimento negro, as quais, se tornaram mais visíveis do ponto de vista institucional com o complexo arranjo organizacional e normativo criado a partir de 2003 através do governo Lula e por governos subnacionais como a Bahia, que é reconhecidamente a principal referência estadual de todo esse processo.
A rigor, relegar homens e mulheres negros e mesmo mulheres brancas a papéis secundários na administração superior do aparelho de estado no Brasil não revela apenas discriminação, racismo e sexismo institucionais, mas sobretudo, falta de inteligência política e incapacidade cognitiva para ter percebido que, mesmo diante de fortes obstáculos e limites, houve sim, nos últimos treze anos, um processo de empoderamento racial e de gênero nas instâncias da gestão pública brasileira. Por isso, será muito difícil que organizações e lideranças autônomas e independentes dos movimentos sociais, do movimento negro e de mulheres negras, em especial, aceitem tratar dos seus interesses coletivos com representantes de escalões inferiores, orientados e monitorados por várias camadas de poder acima de suas restritas competências, protegendo e resguardando, assepticamente, os detentores do poder provisório das casas grandes dessa nova configuração masculina-caucasiana do Planalto.
Talvez o que esteja passando ao largo das estratégias deste governo é que, hoje, após quinhentos anos de lutas, as referências da maioria da população negra brasileira e dos não negros politicamente bem orientados, é que o legado de garantia de direitos e democracia plena remonta à luta de Zumbi dos Palmares e dos lideres da Revolta de Búzios, todos devidamente reconhecidos como heróis da pátria e “observadores atentos” de nossa história, simbolicamente presentes a poucos metros do Palácio do Planalto no Panteão dos Heróis da Pátria. Por outro lado, se a ideia do governo provisório foi a de tornar mais explícito o apartheid entre uma nova casa grande e uma nova senzala por eles idealizada, cumpri-nos dizer que a única senzala possível de ser frequentada negros brasileiros, atualmente, é a Sezala do Barro Preto sede do Bloco Afro Ilê Aiyê, no Curuzu-Liberdade, bairro símbolo da resistência negra baiana e brasileira, há mais de quarenta anos. Registre-se: todos os políticos baianos da turma do Temer que trabalharam para derrubar o governo Dilma, sabem muito bem do que estamos falando!
Por isso, nos impressiona que a discriminação e o racismo desses novos inquilinos do Palácio do Planalto e da Esplanada dos Ministérios foram tamanhos que sequer perceberam que dentre os mais aguerridos e fiéis defensores dos seus discutíveis movimentos para a derrubada da Presidenta Dilma, estiveram perfilados um número significativo de deputados e deputadas federais negros, baianos inclusive, que até discursaram em prol do impeachment reivindicando para si, a condição étnica e de gênero. No entanto, nem isso foi suficiente para retirar tais negros da invisibilidade quando a discussão passou do mundo simbólico das ideias para o exercício concreto de poder no aparelho de Estado. Os casos da deputada federal Tia Eron e do deputado federal Márcio Marinho, ambos da Bahia e do PRB 100% Temer são muito emblemáticos.
Mas, mesmo que essa “representatividade” negra venha ser aquinhoada, tardiamente, na bacia das almas dos cargos federais, ainda não será suficiente para o estabelecimento de um diálogo eficaz e efetivo para dar consequência, em forma e conteúdo, nas demandas dos movimentos negros historicamente atuantes e organizados. Os “negros de Temer”, via de regra, são também os mesmos negros que fazem parte e/ou lideram organizações religiosas e de comunicação que fomentam e atuam em agendas conservadoras e que reconhecidamente promovem ações que estimulam a intolerância religiosa e o combate ao movimento negro mais progressista de inspiração pan-africanista, afro referente e afro centrados no que se diz respeito a histórica mundial e brasileira. Isto é, do ponto de vista ideológico, não basta apenas ser fenotipicamente negro. A condição necessária e suficiente para se falar em nome e em defesa de todo o legado civilizatório do povo e da cultura africana no Brasil é ter pertencimento com as lutas que remontam ao século XVI e XVII, do Quilombo dos Palmares; com as crenças e o respeito as tradições e a cultura das religiões de matrizes africanas e os ideais de liberdade e igualdade da Revolta de Búzios.
De resto, cabe-nos ainda observar que toda essa movimentação inicial do governo provisório é apenas parte do distanciamento social e político da modelagem mental que o presidente interino Michel Temer deixou-se revelar, a priori. Coisas muito mais graves nesse campo parecem estar por vir, basta-nos verificar que na Medida Provisória 726/2016 que reorganiza os órgãos da Presidência da República e dos Ministérios caberá ao novo Ministério da Educação e Cultura (MEC), e não mais ao INCRA, a “delimitação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como determinação de suas demarcações, que serão homologadas mediante decreto” (sic). Entende-se, portanto, porque o atual dirigente máximo do MEC foi empossado sob vaias, palavras de ordem e faixas acusando-o de golpista e com frases “carinhosas” do tipo: vaza Mendocinha!