Elias de Oliveira Sampaio

Políticas Públicas

Economista do Ministério da Economia. Mestre em Economia e Doutor em Administração Pública pela UFBA. Autor de diversos trabalhos acadêmicos e científicos, dentre eles o livro Política, Economia e Questões Raciais publicado - A Conjuntura e os Pontos Fora da Curva, 2014 a 2016 (2017) e Dialogando com Celso Furtado - Ensaios Sobre a Questão da Mão de Obra, O Subdesenvolvimento e as Desigualdades Raciais na Formação Econômica do Brasil (2019). Foi Secretário Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) e Diretor-presidente da Companhia de Processamento de Dados do Estado da Bahia (Prodeb), Subsecretário Municipal da Secretaria da Reparação de Salvador (Semur), Pesquisador Visitante do Departamento de Planejamento Urbano da Luskin Escola de Negócios Públicos da Universidade da Califó ;rnia em Los Angeles (UCLA), Professor Visitante do Mestrado em Políticas Públicas, Gestão do Conhecimento e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Professor, Coordenador do Curso de Ciências Econômicas e de Pesquisa e Pós-Graduação do Instituto de Educação Superior Unyahna de Salvador.

Afinal, quem garantirá a democracia brasileira?

O ano no Brasil só começa após o Carnaval. Mas em 2023, há uma particularidade que vale registro: superada a intentona golpista de 8 janeiro, tudo o que se anunciava como ação estratégica, para a política e a gestão do novo governo Lula, deve retornar para “a prancheta” de seus pensadores para incluir – de forma muito forte e resoluta – a luta pelo desenvolvimento efetivo e pela democracia plena como elemento estruturante para garantir o futuro da sociedade que conhecemos.

Com efeito, toda a conjuntura dos últimos quatro anos, inclusive as ações do governo Bolsonaro durante a pandemia e, mais recentemente, a ciência de contextos genocidas mais estruturais patrocinados por aquela gestão e emblematicamente traduzidos pela tragédia dos Ianomâmis, nos impõe ao menos duas reflexões que me parecem fundamentais para ajudar no sucesso deste Lula 3.

A primeira delas é que a experiência do interregno Bolsonaro (2018-2022) demonstrou que é mais do que necessário colocar em todos os parâmetros da ação política e político-institucional imaginada por todo campo político de apoio ao Governo Lula e seus representantes subnacionais eleitos em 2022, não apenas os discursos em prol da democracia, mas sobretudo, a prática cotidiana institucionalizada para manutenção do estado democrático de direito duramente reconquistado depois da ditadura militar.

Paralelamente, é necessário atuar para a extirpar dos convívios coletivos formais os arautos do extremismo investidos em representações legitimadas por lacunas políticas ou institucionais, como o fora o próprio Bolsonaro em sua fase de Deputado Federal por mais de 30 anos, onde aclimatou os seus ideais extremistas aproveitando-se da omissão da própria Câmara Federal e de demais atores políticos, à direita e à esquerda. Isto é, todas as pessoas que comungaram com os atos de 8 de janeiro e as ações de caráter fascista de toda a era Bolsonaro não devem ter espaços institucionais para reproduzir suas ideias, por um simples motivo: após o 8/1/2023, resta evidente que o bolsonarismo nada mais é do que subproduto da pior espécie de extremismo, logo, é – per se – um risco iminente para a sobrevivência da nossa própria democracia.

Por seu turno, é imperativo requalificar a força político-eleitoral do que chamamos de centro-esquerda, particularmente na Região Nordeste. A rigor, é preciso reconsiderar os reais significados de representatividade política dos seus mais de 80% de homens e mulheres negros e indígenas para dentro das estruturas mais robustas do aparelho de estado que ora vem sendo reformatado pelo Presidente Lula porque, ao fim e ao cabo, foi o peso desta população nordestina que não só garantiu a vitória eleitoral de Lula nas disputadíssimas eleições de 2022, mas que no atual momento de extrema conflagração política, também deverá se constituir num importante fiel de balança para os próximos embates.

É óbvio que a força eleitoral de Lula foi a condição necessária para garantir a eleição estadual de seus principais aliados no Nordeste, mas, é importante também assinalar que a vitória dele foi igualmente retroalimentada pelos seus ganhos marginais de votação contra Bolsonaro atrelados a cada um desses candidatos nos Estados, o que, dado o apertadíssimo resultado final das eleições presidenciais, impediu que o ex-presidente derrotado permanecesse no poder. Assim, as performances eleitorais de Jerônimo Rodrigues (Bahia), de Elmano de Freitas (Ceará), de Carlos Brandão (Maranhão), Rafael Fonteles (Piauí) e Fátima Bezerra (Rio Grande do Norte), para ficar apenas no campo da esquerda nordestina, foram, na prática, “as palhas que quebraram as costas do camelo”.

Portanto, “nunca antes na história (da república) desse país”, a região Nordeste e seu povo de diversidade singular, foram tão importantes para a manutenção da institucionalidade política e serão tão estratégicos para garantir a sustentabilidade e a efetividade da nossa jovem democracia, ao menos no futuro próximo. Para isso, essa força política não pode mais ser um instrumento gerido e muitas vezes até manipulado politicamente a partir de (pré) conceitos que identificam os seus eleitores e atores sociais pelo viés do peso das políticas compensatórias, das quais, a região ainda é a maior demandadora, especialmente do Bolsa Família.

Em sendo assim, talvez o principal legado que esse terceiro mandato do Presidente Lula deixe para o Brasil ao final de 2026, não seja apenas a reestruturação de seu principal e ainda necessário programa de transferência de renda para a Região. Mas sim, a elaboração de um processo de planejamento paulatinamente bem parametrizado para redução significativa da quantidade de pessoas que precisem dessa política pública como única forma de sobrevivência de sua família, concomitantemente, com a criação e o fortalecimento de uma classe média negra no âmbito regional.

Isto é, da mesma forma que as políticas de desenvolvimento do Nordeste encampadas a partir de 1952 pelo BNB e depois, mais organicamente pela Sudene (1959), foram cruciais para reduzir fortemente a morte de fome e de sede e estabelecer as bases para maior liberdade para o subjugado povo nordestino perante o coronelismo regional de outrora, a grande tarefa política do novo governo Lula 3 é fazer a transição da nossa ainda histórica “região-problema” demandadora de soluções compensatórias crescentes, para nossa “região-solução” a medida que se implemente um modelo desenvolvimento racialmente apropriado, ou seja, com a garantia de inclusão, diversidade e equidade, a priori.

Digo isto porque há uma questão de fundo que precisa ser respondida pelos policy makers de plantão (e os que estiveram de plantão outrora) e que a literatura mais tradicional, mesmo as do campo progressista, resiste em lidar adequadamente.
Trata-se de indagar o porquê de emblemáticas instituições como Sudene, BNB e BNDES terem conseguido fazer o Nordeste crescer e se modernizar economicamente, mas não foram capazes de serem exitosos em fazer com que a Região elevasse o seu grau de desenvolvimento, stricto senso, quando comparada ao centro-sul, particularmente, no que tange as desigualdades raciais intra-regionais e inter-regionais, mesmo depois de mais de 70 anos de implementação das chamadas políticas desenvolvimentistas de zilhões de reais, inclusive, durante os oito anos de Lula 1 e 2, período de governo de maior “continuum” de crescimento econômico e distribuição de renda já experimentado pelo Brasil?

A resposta é simples: tais políticas não conseguem se desvincilhar daquilo que eu chamo da visão “leuco-desenvolvimentista” da grande maioria dos policy makers brasileiros, inclusive e acentuadamente, aqueles que muitos consideram dos mais progressistas. Ou seja, os formuladores de políticas públicas no Brasil têm sido historicamente incapazes de incluir nos seus modelos mentais e planos de ação, tanto a real importância socioeconômica da dimensão e a capilaridade da população negra, como combater os deletérios efeitos econômicos e para-econômicos de 350 anos de escravização e, depois disso, de 150 anos de institucionalização do racismo como elementos objetivos de barreiras à entrada e à ascensão dos negros nas diversas esferas do mundo produtivo, da educação e do trabalho, em toda a nossa sociedade.

Logo, a ausência de políticas de combate às desigualdades raciais, a priori e como elemento estruturante nos grandes marcos das políticas de desenvolvimento para o Nordeste, é “a tensão essencial” que nos ajuda a compreender as causas da persistência daquilo que Myrdal, ao estudar o caso dos EUA em O Dilema Americano (1942), chamou de Causação Circular Acumulativa ou “círculo vicioso” da pobreza, associando esse fenômeno ao racismo, ao preconceito e a discriminação dos brancos americanos contra os negros americanos.

Ao trazer esse construto teórico-metodológico para o caso nordestino, fica evidente que é o desprezo por esse tipo de entendimento conceitual que tem tornado ineficazes as chamadas políticas desenvolvimentistas desde as propostas de Getúlio Vargas de 1952, perpassando pelas ideias de Celso Furtado contidas no Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN/Sudene) em 1959, e mesmo as proposições do Documento Base para Recriação da Nova Sudene, do primeiro governo Lula em 2003.

É diante de todo esse contexto que, apesar de reconhecer o significativo esforço de inclusão e diversidade demonstrado na montagem do primeiro escalão de Lula 3, com o retorno da SEPPIR, do Ministério dos Direitos Humanos, da Cultura, da Mulher e da criação do Ministério dos Povos Originários, tendo a sua frente mulheres e homens de importância e representatividade incontroversa para os debates em tela, ainda assim, ao meu ver, estamos muito aquém da organicidade necessária para fazer valer as demandas mais prementes do povo negro brasileiro em geral, e de sua parcela nordestina em particular.

Ademais, considerando que o PT e a esquerda brasileira já possuem uma experiência de mais de 13 anos de gestão do governo federal, e quase 30 anos de gestão de algumas unidades subnacionais, já passou da hora das suas escolhas políticas partidárias para a gestão serem menos enviesadas racialmente. A verdade é que os negros e indígenas brasileiros apoiadores dos partidos de esquerda precisam urgentemente avançar para além das pastas de políticas compensatórias ou de caráter transversal. Eles têm “régua e compasso” e é preciso ir para os espaços que tratam do “core” da Política, da Gestão, da Economia, do Orçamento e do Planejamento Público, sem ser um simples apêndice representativo.

Caso contrário, correremos um sério risco de termos mais do mesmo. Ou pior, termos que postergar essa disputa para momentos políticos mais difíceis, e a experiência recente nos mostrou que sempre as coisas podem piorar.
Sigamos!

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