Foto: Christophe Archambault/AFP
Região de idioma alemão cria fóruns permanentes de cidadãos para fazer propostas de política pública 02 de janeiro de 2021 | 11:40

Sorteio vira remédio para males da democracia eleitoral na Bélgica

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Sorteios para escolher quem vai formular políticas públicas estão sendo usados como ferramenta para fortalecer a democracia na menor unidade federativa da União Europeia, Ostbelgien – região de fala alemã no leste da Bélgica.

No último dia 7 de outubro, o governo regional fechou o primeiro ciclo de uma experiência pioneira, iniciada um ano antes: moradores selecionados aleatoriamente entregaram ao Parlamento 14 recomendações para melhorar o serviço público de saúde.

Não se trata de um grupo qualquer sorteado de qualquer jeito: eles formam uma amostra aleatória representativa da população local. Suas propostas também não são simples sugestões. Por lei, governo e Parlamento devem adotá-las, ou justificar por escrito se concluírem que elas não são viáveis.

Estudados por cientistas políticos como um instrumento inovador, os sorteios eram ferramenta comum há 2.500 anos, no início da democracia, em Atenas. No século 21, uma versão mais sofisticada tem sido usada como remédio para “a onda de raiva e desconfiança que varre as democracias eleitorais ocidentais”, nas palavras do historiador cultural David van Reybrouck, um dos fundadores do G1000, um centro para inovação democrática que desenhou o modelo de participação popular em Ostbelgien.

Sintomas dessa insatisfação que a democracia participativa tenta reverter são a alta abstenção em eleições, a popularidade de políticos autoritários e a desconfiança em instituições. A meta não é que os cidadãos sorteados substituam políticos eleitos, diz o cientista político Yves Dejaeghere, que lidera o G1000.

“Mas as sociedades valorizam a evolução, e nossas democracias funcionam em torno das mesmas instituições há 150 anos. A ideia de que um voto a cada cinco anos é participação suficiente no século 21 não faz mais nenhum sentido.”

No caso da região belga, há avanços importantes em relação a outros painéis populares que atuaram em outros países, afirma Dejaeghere. Em primeiro lugar, ele é permanente, com estrutura e orçamento próprios.

A institucionalização “permite que os governos tomem decisões mais difíceis e com custos mais baixos”, segundo relatório detalhado sobre participação cívica e inovação política publicado neste ano pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

Instâncias de decisão popular regulares “podem aumentar a confiança no governo e enriquecer a aptidão democrática da sociedade, ao criar mais oportunidades para que mais pessoas moldem significativamente as decisões públicas”, afirma a instituição.

Outro avanço de Ostbelgien é que são os moradores que definem os tópicos para recomendações, e não o governo. Na região belga, nem Executivo nem Parlamento podem dar palpite no tema nem proibir nenhum assunto.

Para garantir legitimidade aos grupos de cidadãos e eficiência nas decisões, é importante que a população esteja corretamente representada em termos de gênero, idade e nível de educação (que costuma refletir também o nível de renda), diz Dejaeghere.

Segundo ele, o sorteio é a ferramenta mais eficiente para garantir equilíbrio de gênero nas decisões políticas, já que mesmo nos países em que cotas ou outras regras elevaram a fatia de mulheres no Legislativo, as que têm condições de se candidatar costumam ser mais velhas e mais escolarizadas.

A escolha aleatória e estratificada procura criar um microcosmo da população e simular o que ela pensaria se tivesse tempo para aprender sobre um tema, para ouvir vários pontos de vista sobre ele e para discuti-lo de forma civilizada, diz o cientista político Tiago Peixoto, especializado em políticas participativas e membro do conselho consultivo do recém-criado World Citizens’ Assembly.

Ou seja, tão importante quanto sortear um grupo representativo é garantir que todos os envolvidos possam ouvir, falar e ser ouvidos, e que vários pontos de vista sejam considerados, observa o especialista brasileiro. Isso inclui vencer a desconfiança de estratos da população que costumam ser deixados à margem de decisões políticas, afirma Dejaeghere.

“Algumas pessoas nunca foram ouvidas nem mesmo em questões domésticas, e não acreditavam que pudessem ter voz em decisões importantes”, diz ele. Do primeiro Conselho Cidadão de Ostbelgien (chamado de Bürgerrat), inaugurado em 16 de setembro de 2019, fazem parte um pedreiro, uma secretária, um estudante, um técnico de laboratório, um biólogo, um ex-policial, um professor, uma dona de casa e um funcionário dos correios, entre outros. As idades variam entre 20 e 80 anos, e metade dos assentos é ocupada por mulheres.

O Bürgerrat define os temas prioritários e acompanha depois a implementação das recomendações, mas elas são elaboradas por uma outra instância também aleatória e estratificada, a Assembleia cidadã. Nesse passo, dependendo do assunto estudado, podem ser incluídas novas categorias nas regras do sorteio, diz Dejaeghere.

“Se o grupo discutirá um novo plano de mobilidade para uma cidade em que 60% dos moradores usam carros, é preciso levar em conta essa realidade”, exemplifica. Ele cita também o caso de Leuven, em que um conselho estudou um projeto de recreação no canal da cidade belga.

O grupo tinha moradores da vizinhança, que seriam afetados pelo movimento, mas também de outras partes da cidade que teriam no canal sua única fonte de lazer aquático no verão.

Dejaeghere afirma que, além de aumentar a participação popular e fortalecer a confiança na democracia, os conselhos populares são vantajosos para os políticos eleitos, que ganham respaldo em temas delicados.

Ele cita o exemplo da Irlanda, em que assembleias mistas (com políticos eleitos e cidadãos sorteados) foram usadas para discutir aborto e casamento gay. Foi desses grupos que surgiram propostas contrárias à proibição, depois ratificadas em referendo nacional e consolidadas em mudanças constitucionais.

“A necessidade de se reeleger reduz a liberdade dos políticos de assumir posições polêmicas. Um deputado de partido conservador que considere oportuno avançar na legislação sobre aborto terá mais facilidade se houver uma assembleia de cidadãos pressionando”, afirma o cientista político.

Além disso, segundo ele, políticos sempre acabam se encontrando com a opinião pública em suas decisões. “A questão é como preferem fazer isso: acompanhando as reações pelo Twitter, recebendo uma contestação na Justiça, enfrentando protestos nas ruas? Ou preferem que exista uma esfera de debate e decisões informadas, que os apoie quando seus projetos forem aprovados?”.

Um indício de que o modelo beneficia também os eleitos é que ele foi aprovado por unanimidade pelos seis partidos do Parlamento de Ostbelgien.

“Veja o iPhone. Uma versão 11 é lançada não porque a 10 não funcione, mas porque é possível melhorá-la. A democracia na Ostbelgien está saudável, a comunidade é afluente, com muito poucos problemas sociais, mas os parlamentares superaram suas rivalidades políticas porque viram vantagens na nova instância”, afirma.

Nessa primeira rodada, o Bürgerrat definiu como tema prioritário melhorar o atendimento de saúde em setembro de 2019, ainda antes da pandemia. As ondas de Covid-19 atrasaram um pouco o funcionamento da Assembleia Cidadã, constituída em março, quando começaram os confinamentos europeus, mas ela cumpriu suas fases de informação, debate e elaboração de propostas e entregou suas recomendações ao Parlamento em outubro.

Segundo Myriam Pelzer, que coordena o setor permanente de Diálogo com os Cidadãos do governo regional, durante o processo o grupo percebeu que o tópico determinado pelo Bürgerrat era amplo demais. “Isso pode levar o Conselho a definir pautas mais claras e precisas em diálogos futuros”, diz ela.

A Assembleia focou suas recomendações em melhorar a atratividade e a formação na área de enfermagem e a qualidade de vida em asilos de idosos. No momento, o Parlamento estuda as propostas, e o Bürgerrat discute o tópico prioritário para o próximo ano legislativo.

Conflitos na França mostram limites da prática

No fim de junho, a Convenção Cidadã sobre o Clima na França era a principal vitrine de participação popular na formulação de políticas públicas.

Nos jardins do palácio do Eliseu, sede do governo francês, o presidente Emmanuel Macron prometeu aos 150 habitantes encarregados de elaborar propostas para reduzir o aquecimento global que um projeto de lei incorporando 146 das 149 recomendações seria apresentado até o fim do verão europeu.

O verão acabou, veio o outono, e o inverno começou nesta quinzena em meio à tensão crescente entre os participantes do fórum popular e o governo, uma crise que lança sombras sobre a experiência.

Incomodados com a demora, membros da Convenção divulgaram uma petição com 330 mil assinaturas pedindo ao governo que mantivesse o compromisso de levar adiante as recomendações.

Macron, que havia prometido em discurso acatar as propostas “sem filtro”, reagiu mal. “Estou realmente muito zangado com os ativistas. Não se pode dizer ‘porque esses 150 cidadãos escreveram algo, é a Bíblia’”, afirmou em entrevista neste mês.

Para o cientista político Tiago Peixoto, que trabalha em inovação democrática há duas décadas, é normal que haja demora na implementação de propostas que dependem do Legislativo, mas os atritos podem indicar uma falha básica na experiência francesa: a gestão de expectativas.

“Esse é um ponto tão elementar em projetos de participação popular quanto as fundações em engenharia civil. Se os resultados ficam aquém das expectativas, há insatisfação e desconfiança. O remédio que vem para resolver males da democracia acaba repetindo os mesmos erros”, afirma Peixoto, que foi professor da Academia GovLab, na Universidade de Nova York (EUA).

Folha de S. Paulo
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